David Crosby 80 anos - o sobrevivente improvável

O seu último álbum a solo, <em>For Free</em> (2021), saiu a escassas semanas Crosby completar 80 anos, causando estupefação e granjeando excelentes críticas.
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Uma das inúmeras biografias de David Crosby - cantor, autor e guitarrista americano que integrou grupos famosos como The Byrds, Crosby, Stills & Nash [CSN] e Crosby, Stills, Nash & Young [CSNY] - refere que a sua obra vendeu mais de trinta e cinco milhões de álbuns, só com estas bandas. Deduzirá o leitor: deve estar riquíssimo!

Mas não é assim. A trágica história deste músico criativo e irreverente revela-se um ziguezaguear de altos e baixos constantes, uma sequência de episódios incríveis, dignos de uma telenovela de grande audiência. Em plena pandemia, as dificuldades de subsistência, agravadas pelo cancelamento de concertos a partir do ano 2020, levaram-no a vender os direitos de todo o seu catálogo musical em março deste ano - tal como têm feito outros artistas da sua geração, nomeadamente Bob Dylan (2020) ou Paul Simon (2021) - para ter alguma folga orçamental.

O carismático David Crosby (n. 14-08-1941) - carinhosamente conhecido como Croz - tornou-se famoso nos anos 60 do século XX com os Byrds (1964-1967), criando pouco depois um novo projeto com Stephen Stills, dos Buffalo Springfield (1966-1968), então em dissolução, e Graham Nash - em vias de deixar a banda britânica The Hollies (1962-1968) - dando origem aos Crosby, Stills & Nash. Os três músicos tinham em comum - além de experiência profissional em grupos de grande sucesso - serem todos autores de canções, cantores e guitarristas, e terem uma excecional aptidão para harmonizar vozes, conseguindo uma fusão tão arrebatadora e inovadora que se tornaria rapidamente na sua imagem de marca. No ano seguinte juntariam um novo elemento, Neil Young, proveniente também dos Springfield.

Ao estrondoso sucesso do primeiro álbum do trio, justamente intitulado Crosby, Stills & Nash (1969) - vencedor de um Grammy para o melhor artista revelação desse ano - seguiu-se a estreia de CSNY com um concerto em Chicago. A segunda atuação do quarteto foi no mítico Festival de Woodstock, para uma audiência estimada entre quatrocentas a quinhentas mil pessoas. Com o êxito explosivo, o passo seguinte não poderia deixar de ser a gravação de um novo disco, agora com Young, dando origem ao Déjá Vu (1970), que nascia sob uma enorme pressão e expectativa. Segundo Carl Gottlieb, coautor da autobiografia de Crosby Long Time Gone (1988/2007), antes do lançamento do álbum havia já dois milhões de encomendas, configurando o equivalente a um disco de dupla platina!

Na época era habitual estes jovens músicos, na casa dos vintes, ficarem atordoados com as primeiras fortunas que ganhavam e de imediato comprarem carros de alta cilindrada - Crosby refere inicialmente um Porsche, mais tarde um Ferrari, um BMW e ao longo da vida vários Mercedes topo de gama - e em seguida eventualmente uma casa ou mansão. Entre as dispendiosas aquisições compatíveis com o novo estatuto surgiriam também, no caso de Crosby, as motos - teve várias Harley-Davidson e pelo menos uma Triumph - barcos - o famoso e inspirador veleiro Mayan, de 22,5 metros - e pelo menos dois aviões privativos que o próprio pilotava, como afirma no segundo volume autobiográfico em coautoria com Gottlieb, Since Then (2006). Não se excluem, evidentemente, equipamentos e instrumentos musicais de grande qualidade e prestigiadas marcas, bem como todo o tipo de mordomias nas digressões, nomeadamente hotéis de luxo e limousines. Descomprometidos e livres, achavam-se hippies, mas viviam como milionários.

Dois graves problemas financeiros levaram Crosby à miséria e subsequente bancarrota nos anos oitenta: por um lado foi ingenuamente vigarizado por um contabilista simpático que tratava de todas as suas finanças - e de muitos outros clientes, o que lhe permitia jogar com os dinheiros de uns e de outros dando a todos a ilusão de que havia liquidez - por outro, o tremendo deslize de se deixar afundar no consumo descontrolado de drogas duras. Se o primeiro o deixou com uma gigantesca dívida ao fisco, que andou a pagar durante muitos anos, o segundo levou-o às portas da morte. Foi várias vezes preso, por posse de drogas ilegais e de armas de fogo, por condução irregular e por diversas variações a estes temas, chegando a ser condenado, tornando-se fugitivo e acabando por ver o seu retrato afixado em público como procurado pela justiça. Viria a entregar-se e a cumprir um duríssimo ano de prisão, tendo mais tarde escrito uma carta ao juiz a agradecer a sentença e assumindo que foi graças a ela que conseguiu libertar-se da inexorável degradação em que se encontrava.

Talvez se referisse a esta tenebrosa fase da vida quando em 1997, na cerimónia de indução dos CSN no Rock & Roll Hall of Fame, Crosby afirma com humor: "Para quem já deveria ter morrido há uns quantos anos, estou-me a safar bastante bem". Ou talvez quisesse antes dizer que poderia já ter morrido umas quantas vezes, mas sobreviveu. Efetivamente, dois anos antes tinha-lhe sido diagnosticada Hepatite C e, apesar da baixa probabilidade de sobrevivência apontada pelos médicos, acabou por receber um transplante com sucesso; em 1991, com cinquenta anos, tinha tido um terrível acidente de moto que o deixou com várias fraturas e problemas ortopédicos permanentes, mesmo após múltiplas cirurgias; e em 87, depois de deixar a prisão, soube que era diabético. Anos mais tarde viria a sofrer graves problemas cardíacos, exigindo novo internamento hospitalar e uma intervenção cirúrgica, mas uma vez mais fintou a morte.

No meio de muitas aventuras e desventuras sobressai o aparecimento de James Raymond - um talentoso pianista, compositor e produtor - que, pelos trinta e poucos anos de idade, descobre ser filho biológico de David Crosby. O progenitor encontrava-se hospitalizado, na longa espera por um fígado compatível - pouco depois de ter sabido que finalmente, quando já não tinham esperança, a sua mulher engravidara - quando recebeu uma carta de um tal John Raymond. Este apresentava-se como pai do seu filho, James (n. 1962), que adotara em criança, entrando em contacto apenas devido à gravidade da situação de Crosby. Este passo viria a afetar imensamente a vida do músico: não só pai e filho se deram muitíssimo bem desde o primeiro encontro, depois da cirurgia, como a grande admiração mútua proporcionou uma convergência criativa notável, de onde resultariam vários projetos musicais conjuntos, álbuns e digressões. Crosby entra assim no século XXI com um novo élan, um novo filho e um filho novo que, por coincidência, nasceria pouco depois da primeira neta, Grace Raymond (sobrinha do recém-nascido Django Crosby).

Outro curioso capítulo da vida de Crosby é sem dúvida o do seu grande amor pela navegação à vela, em especial no adorado Mayan, com que fez memoráveis viagens bem ao estilo hippie. Acompanhado de amigos músicos e marinheiros, bem como das namoradas de uns e de outros - as suas, sempre várias, de acordo com todas as fontes, eram consideradas as mais bonitas - passavam umas temporadas desligados do mundo real, sem comunicações, sem preocupações, vivendo no paraíso, em paisagens de sonho, nuos, cantando e tocando, mergulhando e pescando, deleitando-se com a gastronomia de bordo. Quando iam a terra, geralmente era para abastecer, não só de alimentos mas também de substâncias que complementavam os prazeres sensoriais.

David Crosby ficou na história da contracultura inegavelmente como uma lenda viva da música folk/rock, deixando um legado de canções imortais como Guinnevere ou Déjà Vu, entre muitas outras. Mas não escapou à trilogia sex, drugs & rock"n"roll que marcou a época e que ele cultivou intensa e insanamente. Possivelmente devido a essa fama (bem documentada), a revista Rolling Stone tem produzido uma série de vídeos, numa rubrica online intitulada Ask Croz, em que o assertivo músico responde espontaneamente a todas as perguntas enviadas pelo público, sem pudor, sem prévio conhecimento das mesmas e fazendo as delícias dos fãs.

O seu enorme talento e o prazer, tantas vezes reiterado, de fazer música em conjunto, permitiram-lhe sempre, nos bons e nos maus momentos, melhor ou pior, manter a atividade profissional, escrever canções, gravar discos e continuar a fazer concertos e digressões. Mas recentemente surgiu o que qualquer músico mais teme: problemas incapacitantes (neste caso, nas articulações dos dedos). No entanto, o otimismo com que aprendeu a encarar as muitas oportunidades que considera que a vida, inexplicavelmente, lhe concedeu, leva o artista a tranquilizar os admiradores desolados, afirmando que continuará a criar música e que tem planos para novos discos.

De facto o seu último álbum a solo, For Free (2021), saiu a escassas semanas de Crosby completar 80 anos, causando estupefação e granjeando excelentes críticas. A sua voz mantém-se com uma qualidade invulgar, tendo em conta a idade e, sobretudo, as décadas de excessos vividas no fio da navalha. E o músico não se entrega a uma triste visão de que lhe resta pouco tempo de vida, mas sim ao entusiasmo de o aproveitar intensamente, o melhor que pode.

Feliz aniversário David Crosby! Que os teus dias continuem cheios de memórias e histórias, harmonias e canções. Por mim, vou continuar a ouvir, com imenso prazer, a tua extensa discografia e as preciosas voices of the angels que ela encerra.

Flautista

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