Nem todos os heróis usam capa - ou estetoscópio, ou calçado desportivo, ou farda de bombeiro. Alguns usam apenas T-shirt e calças de ganga (ou um macacão esverdeado) enquanto se apresentam heroicamente de microfone na mão perante milhões de pessoas, na maior plataforma multimédia do mundo..Em décadas mais inocentes, um comediante profissional não precisava de ser corajoso. Cobardes como Lenny Bruce podiam passar uma carreira inteira a fazer espectáculos tranquilos para plateias constituídas quase exclusivamente por agentes do FBI, ou irem seis vezes parar à prisão por acusações de obscenidade, ou serem condenados a quatro meses de trabalhos forçados por dizerem a palavra "pilinha", antes de morrerem na penúria aos 40 anos, abraçados a um frasco de morfina - tudo isto sem nunca encontrarem qualquer perturbação social que os obrigasse a mostrar coragem..Entretanto os tempos mudaram, e os comediantes de hoje enfrentam obstáculos sem quaisquer precedentes na longa história da humanidade. Os obstáculos forçaram-nos a ser heróis - um desafio ao qual, honra lhes seja feita, alguns comediantes têm respondido com inestimável valentia..Não é fácil. Na selva em que o ambiente cultural se transformou, criaturas ferozes e tresloucadas fazem tweets cujo conteúdo por vezes não é elogioso; outras escrevem críticas negativas em publicações online lidas diariamente por sete mil pessoas. Confrontados com esta ameaça de extinção, e armados apenas com colunas de opinião em jornais diários, rubricas próprias em estações de rádio, presenças semanais em talk shows, e contratos multimilionários com plataformas de streaming com alcance global, os comediantes alertam bravamente que o statu quo é insustentável e que a comédia enquanto forma de arte corre sérios riscos de morrer..Sticks & Stones é o quinto especial que um dos melhores comediantes do século XXI, Dave Chappelle, gravou para a Netflix depois de um exílio auto-imposto que durou uma década. É também - e a inevitabilidade destas coisas é tal que este "também" podia ser um "portanto" - a quinta ocasião em que as primeiras referências que muitas pessoas leram sobre o especial foram títulos de notícias como "Chappelle causa polémica depois de defender Michael Jackson" ou "Chappelle criticado por fazer piadas transfóbicas"..Uma busca no Twitter na semana de estreia devolvia igualmente dezenas de variações sobre o mesmo tipo de reacção: o tipo de reacção que se deleita menos a reagir do que a imaginar as reacções de terceiros ("que maravilha, aposto que os [categoria de pessoas X] vão odiar isto" ou "é uma pena, mas os [categoria de pessoas Y] vão adorar isto")..Nada disto é novo. Tudo já aconteceu muitas vezes. Os mesmos elogios automáticos à "coragem" de Chappelle e as mesmas críticas automáticas às "ofensas gratuitas" de Chappelle foram ditas e ouvidas no ano passado sobre outro autor de um "controverso" especial no Netflix (Ricky Gervais, Humanity), e voltarão a ser ditas e ouvidas em 2020 sobre outro comediante qualquer. Os mesmos tweets já foram enviados. Este texto também já foi escrito e voltará a ser..Uma das coisas que a comédia ensina é que a repetição pode ser engraçada. Uma das coisas que estes ciclos de indignação e contra-indignação nos ensinam é que a repetitividade raramente é engraçada, o que explica o facto de ninguém lhes achar graça, e o facto subsidiário de tanta gente preferir reagir de outras maneiras: rindo daqueles que imaginam a irritar-se, ou irritar-se com aqueles que imaginam a rir-se..Como qualquer forma de expressão, a comédia é informalmente regulada por um consenso social instável, sujeito a ajustes e convulsões periódicas. Faz parte da natureza específica do humor performativo estar sempre ligeiramente adiantado ou atrasado em relação aos consensos (e os consensos costumam penalizar em igual medida o atraso ou o avanço). Não é, nem nunca foi incomum, que um comediante se encontre súbita e temporariamente do lado "errado" de um limite linguístico ou temático que acabou de ser redesenhado, ou que está em pleno processo de renovação. O que é novo é a ilusão amplificada do ruído provocado por esses processos, o que faz com que grande parte destes debates inconsequentes sejam, mesmo que não o saibam, sobre tecnologia e, num sentido mais lato, sobre a passagem do tempo..Uma das coisas que a tecnologia alterou irremediavelmente é o tamanho e composição do público de cada comediante. Outrora tínhamos semanas inteiras para absorver tanto as notícias do dia como as dinâmicas do mês antes de os profissionais transformarem esse material em comédia. No contexto próprio de um espectáculo de comédia, uma boa piada é muitas vezes uma verdade inesperada à qual reagimos colectivamente (e essa verdade nem sempre é confortável ou descomplicada). O frisson da novidade é um elemento crucial e a resposta muscular pode ser traduzida por um "não acredito que ele disse isto". O que acontece a esse frisson quando já lemos ou ouvimos imensas vezes a mesma piada é que deixa de o ser; e as fricções que gera são necessariamente diferentes, em grau e em género..O problema quando Chappelle faz uma rábula sobre o tema dos géneros não binários, em que imagina auto-identificar-se como "chinês" (rábula que integra os clássicos "olhos em bico" e supressão de consoantes específicas) não é propriamente a violação de um tabu recém-inventado por patrulhas anti-humor, mas o facto de a maioria dos espectadores já ter visto a rábula da "auto-identificação" dezenas de vezes (no especial de Gervais em 2018, por exemplo; ou em quinhentas contas do Twitter..Os critérios são ainda (e justamente) mais apertados para comediantes como Chappelle, cuja eficácia depende menos da qualidade autónoma do material do que da sua execução técnica. Mais do que um homem com a capacidade para dizer coisas engraçadas, Chappelle é um narrador exemplar; e o alcance da sua comédia é indissociável do cauteloso confessionalismo capaz de criar a ilusão de intimidade. Alguém com o seu talento vai sempre conseguir encontrar uma observação universal, e irrepreensivelmente executada (e Sticks & Stones tem várias); e vai sempre encontrar momentos em que essa intimidade vai estar dessincronizada em relação às nossas expectativas (idem)..Exigir a comediantes uma noção perfeitamente calibrada das permissões e sanções flutuantes do seu próprio tempo faz tanto sentido como exigir-lhes que sejam profetas ou heróis. Um homem com 60 milhões de dólares na conta bancária não precisa de estar sempre "certo", mas ainda precisa menos de ser aclamado como corajoso..Se queremos "coragem" na comédia, talvez fosse útil sermos nós a mostrá-la, criando as condições para deixarmos de exigir que as palavras com as quais mais concordamos sejam simultaneamente as mais engraçadas e as últimas que podem ser ditas sobre qualquer assunto. Só porque algo é uma piada, ninguém é obrigado a rir. Da mesma maneira, só porque a reacção negativa a uma piada é não lhe achar piada, ninguém é obrigado a levar a reacção a sério.Escreve de acordo com a antiga ortografia