Dar nova vida a documentos com séculos no Arquivo Histórico da Santa Casa

Maria José Passanha começou a restaurar documentos na Santa Casa e acabou a doar o material do seu ateliê para que a instituição abrisse um gabinete próprio.
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Uma casa com mais de 500 anos de existência tem, quase de forma natural, muito património histórico. Ainda para mais quando estamos a falar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem documentos desde a sua fundação e que ajudam também a explicar a história da cidade de Lisboa. A preservação dessa memória histórica era, por isso, fundamental.

Algo que nem sempre foi fácil de concretizar, mas que desde há uns anos é possível fazer num serviço interno. Tudo porque, depois de anos de colaboração, a restauradora/conservadora Maria José Passanha decidiu doar o material do seu ateliê, quando se reformou, para que os restauros pudessem ser feitos nas próprias instalações do Arquivo Histórico da Santa Casa. "Sempre dissemos que a Santa Casa devia ter o seu próprio gabinete de restauro, aqui nas suas instalações", aponta a restauradora.

De prestadora de serviços à Santa Casa, Maria José passou a benemérita. Doou tábuas para fazer planificação de documentos, papel japonês, dicionários de identificação de autores, o arquivo pessoal dos trabalhos que realizou, tinas de lavagens, os bisturis, pincéis, produtos químicos, estiradores. "Tudo o que quiseram veio para cá, para preencher o espaço físico."

Quando lhe faltou o trabalho, apareceu a Santa Casa

A ligação de Maria José Passanha à instituição lisboeta começou por culpa do sócio que conheceu no curso de Restauro e com quem trabalhou durante 30 anos.

Mas logo a chegada ao curso é um acaso na vida de Maria José, que aos 30 anos estava a estudar História quando surgiu a primeira formação de Restauro. Fez os testes sem nunca pensar que ia ficar e acabou a fazer "um curso extraordinário". Ficou logo decidida também a sua vocação: documentos gráficos. Foi conjugando o trabalho no Estado e o restauro no seu ateliê. Depois, arranjou um sócio e assim se passaram 30 anos.

Atravessaram alguns períodos quase sem trabalho, e foi num desses momentos, "há uns anos", que o sócio se lembrou de oferecer os serviços do ateliê à Santa Casa da Misericórdia, começando por fazer o restauro de um selo. "E assim começámos uma parceria, devagarinho", recorda.

Com uma instituição com mais de 500 anos, não é difícil ter material para restaurar. Maria José Passanha explica que o que mais restauraram foram sinais de expostos. Ou seja, os documentos que acompanhavam os bebés deixados na roda dos expostos. Eram normalmente cartas dos pais, com indicação do nome do bebé, nas quais pediam à Santa Casa para cuidar do seu filho e diziam, por exemplo, se iam buscá-lo mais tarde. Além do papel, o sócio de Maria José também restaurava tecido, o que permitiu recuperar muitas fitas, meias e sapatinhos que eram deixados com os bebés na roda. O papel de Maria José era fazer "a montagem". "Fazia umas pastas fantásticas em que fazia a montagem do documento escrito e os sinais que podiam ser muitas coisas. Um brinco, um colarzinho, uma fita."

Um trabalho minucioso e de cuidado que, segundo Maria José, ajudou a que tivesse ficado com "uma grande ligação" à Santa Casa. Por isso, quando chegou a idade da reforma pensou que só faria sentido doar os seus materiais de trabalho a esta organização. E até a sua funcionária acabou a trabalhar no gabinete de restauro da Santa Casa, tendo-se juntado a outra restauradora/conservadora que já estava na instituição.

Carolina Capucho está há nove anos neste gabinete, embora nem sempre tenha feito restauro puro, como faz hoje, uma vez que chegou antes da existência do gabinete. Entrou depois de um trabalho na Igreja da Encarnação. "Fui fazendo alguns trabalhos pontuais, até que o Arquivo Histórico teve necessidade de colocar um restaurador que tivesse experiência com a documentação de Misericórdias."

No seu dia-a-dia, Carolina Capucho passa mais tempo a garantir que existem condições de acondicionamento boas para todo o Arquivo Histórico e acervo documental do que a restaurar um documento. Porque parte importante da preservação destes materiais é garantir que as salas têm a temperatura e humidade relativa do ar adequadas, que os documentos estão acondicionados em caixas arquivadoras próprias. Só quando é mesmo necessário é que é feito o restauro.

Entregar o ateliê para dar continuidade ao trabalho

O restauro só é possível porque Maria José doou grande parte do seu material de trabalho. Algo que nunca foi uma ideia planeada pela benemérita. Ainda que olhando para trás, a própria reconheça que sempre teve alguma inclinação para ajudar os outros, mesmo que isso pudesse não ser o melhor para o seu negócio. "Sempre que me batiam à porta com alguma dúvida, eu respondia. E havia até quem sublinhasse que assim perdia negócio. Mas eu achava que não era isso que estava em causa, mas o dar."

Por isso, foi tão claro o destino que teria o seu espólio pessoal. "Quando se chega ao fim de um trabalho que gostei imenso de fazer, em que se olha para objetos e se diz assim "o que é que eu faço com isto?", isto não pode morrer, não é?", justifica. Acabou por ser "uma coisa natural" fazer a doação. Uma ajuda que espera que tenha dado o empurrão necessário à equipa de restauro da Santa Casa para manter o serviço ativo.

Do tempo que com eles trabalhou, teve nas mãos "objetos extraordinários", como uma carta de um bebé exposto, escrita com tinta vermelha. "Fiquei em pânico, porque pode desbotar, porque os papéis lavam-se. Mas depois ao ler, aquele papel tinha uma data e uma palavra que era traição e aí quase que temos que dizer "chega para lá", porque de repente a gente quase que se envolve naquela história. Quem era aquela mãe que teve de entregar aquela criança, o que é que lhe aconteceu na vida?"

A par deste documento marcante, Maria José destaca também "algumas coisas muito bonitinhas", como "um sapatinho de seda que veio todo amachucado e que saiu um sapatinho bem arranjadinho". O grande desafio era afastar a emoção e fazer um trabalho técnico. "Foi o que tentei fazer sempre", garante.

Fora das paredes da Santa Casa, Maria José não esquece o restauro de um livro dos finais do século XVII, "mandado pintar" e que era o "levantamento de todas as fortalezas portuguesas da costa oriental de África, pela Índia, até Macau. Eram aguarelas, que tinham sido restauradas 40 anos antes e tinha de ser desfeito esse restauro. Levei um ano a fazer e até sonhei como podia fazê-lo. Vinte e oito daqueles mapas foram expostos em Bruxelas e foi assim o meu prémio de consolidação, porque foi um trabalho muito doloroso, porque podemos correr o risco de estragar mais a peça".

Mas acima de tudo, Maria José Passanha sublinha o "enorme respeito" que os restauradores devem ter pelas peças. Independentemente do valor histórico ou financeiro. "Cheguei a restaurar uma tampa de uma caixa de bombons e disse "vou ter de cobrar isto como uma gravura e isto não vale nada" e a pessoa disse-me, "vale, vale que isso foi-me dado pela minha avó"."

Em todos os casos, Maria José garante que fez o seu melhor: "Eram filhos que passavam por mim."

Preservar 520 anos de história

O Arquivo Histórico garante a guarda dos arquivos definitivo e intermédio da Misericórdia de Lisboa, que são constituídos, essencialmente, por documentos produzidos e recebidos pela instituição, assim como pela biblioteca de Livro Antigo. Recebe massas documentais acumuladas pelos diversos serviços da instituição, fazendo a respetiva avaliação e seleção. Com o grande terramoto de 1755 e o violento incêndio que se seguiu, a Misericórdia de Lisboa viu destruído grande parte do seu património e documentação. Conservando-se, sobretudo, no Arquivo Histórico, documentos de meados do século XVIII até aos nossos dias.

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