Daniel Proença de Carvalho: "Na Justiça há um tique de autoritarismo, ninguém assume os erros ou pede desculpas"

Desiludido com os tribunais, afirma que a justiça é "preconceituosa em relação a quem tem sucesso" e não poupa críticas ao Ministério Público e ao procurador Cunha Rodrigues. Pede um governo reformista, liberdade económica e menos impostos e diz ser um "erro pôr termo às PPP", quanto às quais "há um preconceito ideológico do PS". No dia em que lança o livro Justiça, Política e Comunicação Social -Memórias de um Advogado, percorremos a vida e a obra dos seus 80 anos.
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"Dedico este livro a quem sofreu as injustiças aqui relatadas". O advogado começa a obra a criticar a justiça ou falta dela. A esse propósito, aceitou falar ao Diário de Notícias, que recebeu em sua casa, no Estoril. A publicação, com 375 páginas, foi o pretexto para uma viagem pela vida e a carreira do jurista que já foi considerado um dos homens mais poderosos de Portugal. De fora da conversa não ficaram José Sócrates, Leonor Beleza, António Champalimaud e Rui Nabeiro.

Face aos casos de injustiça, que relata detalhadamente no livro, está desiludido com a justiça?
Houve um processo de desencantamento com o funcionamento da justiça ao longo da minha vida profissional. Saí da universidade com uma ideia muito confiante na profissão que iria exercer. Foi um desencantamento porque verifiquei que se cometem erros. No caso da justiça, os erros assumem uma relevância que atinge direitos fundamentais das pessoas. Isso sempre me preocupou. A desilusão verificou-se até durante o regime anterior à nossa democracia, o período da revolução que foi caótico, e as histórias que conto no livro evidenciam de forma muito expressiva - e tudo o que digo está absolutamente documentado, do ponto de vista factual, não é minimamente controverso - que se cometeram enormes abusos.

Nesse período da revolução que caso destaca?
Todos os que conto no livro são casos muito graves porque são prisões totalmente arbitrárias, sem processos e sem direito a defesa. Relato no livro um caso que ficou célebre, de justiça popular, o caso José Diogo, um caso exemplar de como durante o período da revolução, entre o verão de 1974 e princípios de 1976, virou a lei da selva, não houve Estado de Direito. Mesmo depois, demorou algum tempo até as coisas entrarem dentro dos eixos.

Ao longo da vida e na maioria dos casos, encontrei magistrados conscientes, inteligentes, diligentes e justos. Mas também encontrei pessoas, algumas sem qualificações mínimas para exercer o cargo, e que continuaram sempre a exercê-lo até ao final e chegaram até aos tribunais superiores, como mostram alguns casos em que as injustiças eram manifestas. Donde a expressão "eu confio na justiça", é uma expressão perigosa porque pode confiar-se nalguns casos, mas noutros não.

Por algum momento pensou desistir, mudar de profissão?
Exerci sempre a profissão com empenho e, nalguns casos que relato, mesmo com mais que emoção e sentimento, com verdadeira preocupação. Passei noites mal dormidas com os temas dos clientes, mas isso faz parte da profissão.

A maior parte da minha vida profissional foi feita fora da advocacia criminal, mas estes casos marcaram-me e por isso estão neste livro, além de serem as que me preocupam mais em termos de melhoria do sistema. Quando escrevi este livro, o meu objetivo era contribuir para a melhoria, não tinha outro.

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A sociedade está manietada por uma justiça que não funciona?
Há dois temas que o país não resolveu: o do crescimento económico, na medida em que possibilite a manutenção e o progresso dos direitos sociais, e o segundo tema é o da justiça. De facto, todos os estudos de opinião mostram que a esmagadora maioria dos portugueses não confia na justiça. Há um tema comum que é a demora dos processos, mas também há outros que têm a ver com a desconfiança sobre as decisões, que afeta a credibilidade e a confiança na justiça, isso é grave.

Os métodos que têm sido utilizados para a melhorar não funcionam. Não tenho esperança de que as coisas melhorem, e isso resulta do facto de o sistema de justiça ser hoje um sistema fora de qualquer escrutínio ou controlo exterior. É um sistema que funciona em absoluta autogestão e sabemos que endogenamente é muito difícil, se não impossível, corrigir isto.

As correções vêm sempre de alguém que está de fora, nomeadamente se os utentes pudessem ter qualquer instrumento para melhorar os sistemas, mas de facto não têm. O sistema está construído de forma a que toda a crítica ou escrutínio seja endógeno, não há nenhuma possibilidade de melhorar. Inclusive, os políticos dizem constantemente, "à política o que é da política e à justiça o que é a da justiça", como se a justiça não fosse um problema da política.

Na tomada de posse do governo, o Presidente da República pediu uma reforma mais profunda da justiça. Como ouviu essa mensagem?
Todos os presidentes, nomeadamente na inauguração do ano judicial, fazem essas afirmações porque sabem que é um problema que suscita grande preocupação. Sentem necessidade de o afirmar, mas nunca adiantam propostas concretas. Esperam sempre que o próprio sistema forneça respostas adequadas e isso não tem acontecido, não tem havido melhoria.

Tem havido melhoria em termos de tempo dos processos, mas em parte, essa melhoria resultou de um paradoxo: menos recurso à justiça e a resolução de processos através de meios mais expeditos que nem sempre correspondem a uma melhor justiça. Porque é evidente que quando se fala em excesso de garantismo, o que se quer dizer é que se tiram direito às partes e isto resolve-se facilmente. É verdade, têm sido retirados direitos aos litigantes para que o sistema possa ser mais rápido.

Leonor Beleza sublinha no prefácio "a permanência infeliz de fatores de fraqueza e prepotência da justiça". Esses fatores têm vindo a agravar-se?
Não sinto sinais de melhoria, efetivamente. Acho que houve uma degradação. Penso que a falta de sentido crítico do sistema é, em parte, responsável por isso, porque em todos os casos que menciono no livro, nunca ouvi ninguém fazer um pedido de desculpas ou assumir o erro.

Mesmo nalguns casos, em que a evidência do erro é gritante, persiste-se nesse erro porque há uma dose de arrogância, de falta de humildade, falta de sentido da realidade.

Até falo no livro de negacionismo da ciência quando num caso que relato, a ciência, quase por unanimidade, revela o erro e a justiça ignora essa ciência e persiste no erro. Nega a evidência científica e isto demonstra essa dose de arrogância que persiste em setores da nossa justiça.

Será o caso da acusação a Leonor Beleza com o processo do alumínio. Foi um dos casos em que a justiça não fez justiça?
É evidente. Nesse caso, o pressuposto da acusação é que um determinado produto médico estaria infetado e, na verdade, a ciência demonstrou que não havia nenhum indício sério de que existisse essa infeção no produto. Pelo contrário, a evidência científica mostrava o oposto. No entanto, o Ministério Público prosseguiu até ao fim com essa afirmação que era desmentida categoricamente por todos os cientistas ouvidos.

A justiça tem sido utilizada como arma política ou para aniquilamento dos adversários, na sua opinião?
Não vou a esse ponto. Penso que há preconceitos contra pessoas de sucesso, contra os ricos, contra os poderosos, há preconceitos que são visíveis, nomeadamente na justiça criminal. E na esmagadora maioria dos casos em que se cometem as injustiças, os acusadores estiveram sempre convencidos da bondade das suas posições. O problema não é tanto a consciência moral dos magistrados, mas mais a sua incapacidade de conhecer a realidade e de se despirem de preconceitos e de pré-juízos que formam à partida e que não resistem depois à evidência dos factos.

Como é que isso se altera?
Penso que há vários fatores, inclusive sociológicos. Quando iniciei a profissão de advogado, a magistratura era uma aristocracia. As pessoas eram consideradas socialmente, eram remuneradas de forma equilibrada e isso foi desaparecendo e houve uma espécie de proletarização. Isso foi mau, penso que os magistrados deveriam ter remunerações compatíveis com as suas funções de enorme responsabilidade e acho que socialmente perderam o estatuto. Isso tem consequências e já teve consequências.

Por outro lado, também do ponto de vista cultural, o sistema fechou-se sobre si próprio e, em muitos casos, está hoje desfasado daquilo que é a consciência geral na sociedade. Isso vê-se nos casos de violência doméstica, em que faz muita confusão ler algumas sentenças em que claramente a mulher não é protegida, e onde determinados preconceitos que existiram durante séculos - que, entretanto, foram sendo alterados e destruídos, felizmente -, ainda permanecem nesses meios mais fechados, como é o caso da magistratura.

Quando comecei a profissão, a relação entre advogados e magistrados era muito mais aberta e franca, isso favorecia esse respirar entre a sociedade e o sistema de justiça.

Os juízes vivem numa bolha?
Em parte, sim. Isso nota-se nas decisões. E outro aspeto em que se nota, por exemplo, é na enorme extensão das sentenças. Eu, em muitos casos, já só lia a parte final, porque 80% do que estava lá eram considerações absolutamente inúteis sobre a doutrina ou jurisprudência que, muitas vezes, nem eram aplicadas ao caso.

A avaliação dos magistrados, também nesse aspeto, não é hoje a mais adequada. É muitas vezes uma avaliação com base na erudição, com base naquilo que os magistrados mostram de conhecimento da doutrina ou da jurisprudência, mas na verdade, tudo isso hoje não faz nenhum sentido, é inútil.

Todas as profissões devem ser avaliadas. O grande problema é que não há essa avaliação objetiva e exterior, e por critérios mais adequados aos dias de hoje. O que acontece é que o sistema tem pessoas de grande qualidade e pessoas de pouca qualidade. Portanto, muitas vezes, é um problema de roleta onde o processo vai parar. Não conto isto no livro, mas posso contar-lhe uma história que me aconteceu: um dia, pus um processo civil e foi calhar a um juiz que conhecia há bastante tempo, mas era uma pessoa completamente incapaz. Não só não despachava os processos em tempo minimamente útil, como as decisões eram sempre erradas, o que me obrigava sempre a fazer recurso. Desisti da ação, o cliente pagou as custas da desistência da instância, e a seguir voltei a pôr a mesma petição para distribuição, rezando à nossa senhora ou ao santo que haja para estas coisas, para que o processo não calhasse no mesmo juiz.

Haverá também preconceito em relação aos mais humildes? Serão menos protegidos pela justiça?
No caso das pessoas com menos recursos que recorrem aos tribunais, o problema não é tanto um preconceito contra essas pessoas, mas não terem recursos para defender os seus interesses adequadamente. E aí também acho que o Estado devia ter uma grande preocupação em que todos tivessem o mesmo tratamento, o mesmo tipo de defesa. Quando iniciei a minha profissão como advogado e durante muitos anos, fiz várias defesas oficiosas. E posso garantir-lhe que o fiz com o mesmo, ou até mais, empenho do que relativamente aos clientes que me podiam pagar, porque também acho que essa é uma obrigação do advogado.

Há uma justiça para ricos? Continuam a ser protegidos em muitas instâncias?
É uma observação que nunca vi no passado, nunca vi pessoas poderosas poderem ser beneficiadas na justiça, a não ser pelo facto de poderem exercer os seus direitos, eventualmente com mais eficácia, por poderem escolher advogados mais bem preparados. Mas não podemos achar que, pelo facto dessas pessoas estarem a ser mais bem defendidas, estão a ser beneficiadas por isso. Devem ter o mesmo tratamento e certamente terão.

No caso Champalimaud, recorda no livro uma frase de Salgado Zenha: "Não há inocentes onde se quer que haja culpados". Champalimaud foi perseguido, foi vítima da justiça portuguesa?
Claramente. Penso que quem ler o caso que relato no livro, ficará perfeitamente consciente de que neste caso houve uma perseguição.

E algum preconceito contra uma pessoa de sucesso?
Exatamente isso. Esta cultura contra o sucesso, digamos assim, é uma cultura arreigada na história portuguesa, não é algo recente, vem muito de trás. Penso que ele foi vítima desse preconceito e também por ser alguém que não se conformou com o establishment da época. Era uma pessoa demasiado independente, divorciado, não ia à missa aos domingos, era um pouco marginal naquilo que se exigia a um empresário.

Do Supremo Tribunal de Justiça refere que não está a cumprir o seu papel. Onde está a falhar o Supremo?
O Supremo Tribunal de Justiça falhou totalmente na defesa dos direitos fundamentais das pessoas na época histórica do PREC. Ilustro-o no livro com casos concretos em que, de facto, o Supremo não esteve à altura das circunstâncias.

Como, aliás, de uma forma geral, o sistema de justiça também não esteve, com algumas exceções em que destaco grandes juízes que perante esse período e a adversidade, e correndo riscos, assumiram as suas posições na defesa dos direitos das pessoas. Cito no livro um caso do juiz Dr. Sá Ferreira, em que no início das perseguições do PREC, a 13 de dezembro de 1974, foram presos vários empresários de uma forma totalmente persecutória e esse juiz libertou o meu cliente perante um clamor público e com todos os revolucionários a exigirem a sua prisão, e fê-lo com enorme coragem.

Fê-lo correndo riscos, foi chamado ao Conselho Superior Judiciário, chamando-se-lhe a atenção para os riscos que ele corria porque estava, no fundo, a assumir uma posição de hostilidade, relativamente ao poder dominante em termos quase absolutos que se vivia na época.

Nunca mais vi esse juiz que teve esse comportamento fantástico e quando ele se reformou ligou-me e até fiquei surpreendido. Referiu que já tinha saído do Supremo e queria almoçar comigo. Então fomos almoçar ao Guincho. Disse-me que quis almoçar comigo porque fui o advogado com maior coragem que já tinha visto naquela época, e se não lhe tivesse dito tudo o que lhe disse naquela noite, o meu cliente teria ficado preso como os outros. Todos os outros ficaram presos. Lembro-me que eram para aí duas da manhã e disse a esse juiz que ele tomava a decisão que quisesse, mas que antes disso que me permitisse que ditasse aquilo que tinha a dizer para a ata.

E o juiz permitiu-lhe falar?
Foi-me permitido e então disse tudo aquilo que tinha para dizer sobre os métodos que estavam a utilizar e etc. O homem ouviu tudo e, no final, o meu cliente saiu em liberdade. Isto foi no dia do primeiro congresso do Partido Socialista, mas os títulos dos jornais não tiveram a ver com o Partido Socialista, mas com as perseguições. Foi uma coisa brutal, mas os comunistas fizeram isto em toda a parte, no leste europeu o esquema era o mesmo, eram os sabotadores, depois começava a destruição das empresas e do capitalismo, e a seguir vinha o poder político. O processo era esse e aqui era a mesma coisa, e ver um juiz permitir-se pôr em liberdade tipos que a COPCON tinha prendido e com estas páginas de jornais, era um sacrilégio!

Os juízes perderam essa coragem?
Os momentos são diferentes. O que digo é que a opinião pública continua a ter uma enorme influência nestes processos e nestas decisões. Aprendi isso com Salgado Zenha.

Escreve que em casos que acompanhou, "o Ministério Público aperfeiçoou métodos de condenação prévia dos seus perseguidos junto da opinião pública". Olhando a atualidade, essa crítica poderá aplicar-se ao caso José Sócrates?

Não gostaria de fazer juízos sobre casos concretos, nomeadamente recentes, e sobre casos que não conheço. Aliás, tive o cuidado de tratar neste livro de casos de há mais de 20 anos, porque a distância é muito importante para uma reflexão serena. Não farei comentários. O que é evidente, julgo eu, para quem acompanha a comunicação social e os tribunais, é que claramente há uma cumplicidade entre alguns meios de comunicação social, nomeadamente tabloides, e setores do Ministério Público, que normalmente preparam a opinião pública para as perseguições seguintes.

Se as perseguições são justas ou não, enfim, em abstrato não me pronuncio, mas que claramente há essa preparação, isso hoje parece-me uma evidência. Ainda por cima, através da prática de um crime de violação do segredo de justiça. Parece-me que hoje em dia ninguém minimamente informado em Portugal, pode recusar que isto acontece.

Foi ouvido em escutas a falar com Sócrates, em dois momentos da Operação Marquês. Foi um dos episódios mais difíceis da sua carreira?
Nunca fui advogado de José Sócrates neste caso. Já antes deste caso ter surgido, apenas tive representação em alguns processos, aliás, o primeiro processo em que o representei foi uma ação civil posta por um jornalista contra ele. Não tive intervenção em nenhum destes casos, foram outros colegas meus. Mas essas escutas nunca me incomodaram absolutamente nada, porque em nenhuma delas há alguma coisa que me faça sentir minimamente beliscado. Eram conversas normalíssimas, numa altura em que já não era primeiro-ministro, portanto, são totalmente irrelevantes, não atribuí nenhum significado a isso.

Escreve que a sua exposição pública nem sempre foi agradável. O que é que mudaria se voltasse atrás?
Nada. Não fiz nada por isso, mas as coisas aconteceram. Pelas posições que tomei, fui muitas vezes atacado durante o período em que exerci funções públicas. Havia caricaturas nas manifestações do Partido Comunista em que eu aparecia como se fosse um daqueles líderes nazis. Coitadinha da minha mãe que ficava muito preocupada. A família sente mais essas coisas do que nós próprios, era a isso que me referia.

O que é que fazia nesses momentos de alta tensão? Tocava guitarra?
Fui sempre uma pessoa tranquila e nunca me deixei condicionar minimamente por situações de adversidade desse tipo. A minha vida teve muitos momentos desses, mas que fui resolvendo sempre, sem grande stress. A música ajuda bastante, é uma terapia.

Vivemos uma guerra na Europa. Crê que Putin alguma vez irá a tribunal ou será condenado por crimes de guerra?
Infelizmente, sou muito cético nesse tema. A menos que houvesse uma transformação na Rússia com a queda de Putin e, eventualmente, com uma revolta popular - até ao momento não me parece minimamente crível, uma vez que as sondagens até apontam para um reforço da confiança e na aprovação de Putin -, será muito difícil que alguma vez a justiça pudesse exercer essa função. Pode fazê-lo em termos mais morais e históricos, mas não em termos efetivos, não acredito que isso seja possível. A justiça e a condenação por crimes de guerra desse tipo só aconteceu quando essas pessoas foram vencidas, como em Nuremberga ou, mais tarde, na Jugoslávia. Foram situações em que esses poderosos saíram do poder e tiveram de prestar contas à justiça internacional, coisa que neste momento não estou a ver que venha a acontecer. É horrível, mas é a realidade.

Escreve sobre a Polícia Judiciária, de quem fala como "polícia de elite". Ainda o é ou também se desiludiu?
Não. Penso que a Polícia Judiciária pela sua experiência, pela história que tem, pelos meios de que dispõe, e que pela especialização que também foi fazendo, acho que, apesar de tudo, continua a ser uma polícia com recursos e com possibilidades de ser uma polícia de elite. O que digo é que se perdeu a distinção entre Polícia Judiciária e Magistratura do Ministério Público. O Ministério Público deixou de ser uma magistratura para se transformar numa outra polícia, portanto, há uma duplicação de meios que do ponto de vista organizacional não faz nenhum sentido. Especialmente quando dizemos que há falta de meios em todas as funções de Estado. Era saudável haver uma distância entre polícia e magistratura. Que houvesse uma distância por parte do Ministério Público, que não fosse outra polícia a fazer o mesmo, mas sim uma magistratura que tivesse distância, como existia antes da criação dos DIAP e DCIAP.

E porque terá isso acontecido?
No fundo, foi um projeto de protagonismo e de assunção de poder da parte do Ministério Público, nomeadamente com o Procurador-Geral Cunha Rodrigues, que levou a que se criasse este sistema de menorização da Polícia Judiciária porque os grandes casos mediáticos em que criam protagonismo, são escolhidos pelo Ministério Público.

A Judiciária não ficou bem na fotografia do caso da fuga de Rendeiro?
Não tenho informação suficiente. Um dos problemas é o do tempo. De facto uma justiça que se arrasta durante anos e anos, nunca pode ser uma justiça correta. Mesmo uma pena aplicada tantos anos depois das práticas dos crimes, perde uma grande parte da função que a pena devia ter. Esse é também um dos problemas da justiça, uma morosidade absolutamente incomportável e que tem muito a ver com a falta de critério organizativo e de uma definição de prioridades, objetivos, meios para os atingir, e realismo para que as coisas sejam eficazes e sem isso nada pode funcionar.

Falemos de política e não só. O que mais o marcou na sua relação com o seu sogro, José Domingos da Silva, uma figura incontornável do país?
Foram dois empresários notáveis (José e Agostinho da Silva - fundadores do projeto Torralta), foram pioneiros no turismo em Portugal, com uma visão extraordinária do que iria ser o futuro do turismo em Portugal. Nasceram num pequeno lugar do concelho da Ericeira, cujas habilitações eram a quarta classe tirada em circunstâncias muito difíceis, porque tinham de andar a pé durante algum tempo para ir à escola e que, pelas suas enormes qualidades, capacidade de trabalho, esforço, inteligência e talentos, conseguiram fazer uma obra extraordinária que depois, infelizmente, foi destruída durante o período do PREC.

Guardo deles memórias absolutamente excecionais, pessoas com valores e a quem os trabalhadores adoravam. Aliás, há uma história que por acaso não conto no livro, quando no PREC o Vasco Gonçalves os expulsou da empresa e nomeou uma comissão administrativa, além de os ter mandado prender. Em determinado momento, a comissão administrativa enviou para quem estava a fazer a investigação criminal aos dirigentes, ao meu sogro e ao tio da Natália, um envelope com documentos para serem entregues lá.

E esse homem resolveu, em vez de os ir entregar ao sítio que era suposto, ir entregá-los ao Agostinho da Silva, que convencido de que o homem também podia ser preso, mandou-o logo entregar no sítio onde deveriam ser entregues.

Depois há outra história que conto no livro, em que eles, na prisão, de tal forma seduziram os guardas e os outros prisioneiros, que um dos guardas um dia lhes dizia ao almoço que eles só estavam presos porque queriam, porque era evidente que, se quisessem sair dali, era lá ele que os ia impedir!

Foi diretor de campanha de Freitas do Amaral e muito próximo de Mário Soares. O que aprendeu com estas duas grandes figuras?
Mário Soares foi, claramente, o político que mais me marcou como exemplo de clarividência, coragem física e moral em todos os momentos. Foi um grande político a quem devemos muitíssimo, designadamente no período de afirmação da democracia. Foi, de facto, o líder da resistência à tentativa totalitária. Durante a vida manteve sempre essas características, nunca abdicou delas, nunca se conformou com injustiças, esteve sempre ao lado do direito, dos direitos das pessoas, da liberdade. Foi uma figura que marcou gerações e a grande figura da democracia portuguesa.

São precisos mais Soares no país?
Acho que sim. Muitas vezes, as pessoas podiam criticá-lo por conhecer menos os dossiês e é verdade que isso acontecia!

Foi diretor da campanha de Freitas e escreveu no DN, aquando da morte do mesmo, que "a democracia perdeu um dos seus maiores".

Penso que Diogo Freitas do Amaral também teve um enorme mérito de ter conseguido, durante aquele período quente, formar um partido que conseguiu congregar toda a direita em Portugal e que conseguiu evitar que os saudosistas do antigo regime e personalidades que não se conformaram com o 25 de Abril, pudessem estar enquadrados num partido centrista, democrático, que defendeu a iniciativa privada e o modelo liberal económico. Foi sempre uma pessoa coerente, embora os setores mais à direita do partido não lhe tenham perdoado o seu centrismo, diria, um pouco radical.

Um perfil como o de Freitas conseguiria hoje agregar toda a direita?
Esse é o grande problema da nossa democracia, é que a direita se desagregou e criou-se um partido de extrema-direita que envenenou este espaço onde, certamente, todos os democratas sentem que falta aqui uma alternativa mais liberal, mas ao mesmo tempo democrática, que possa ser um contraponto aoque hoje parece ser a hegemonia do PS.

Aprecia a Iniciativa Liberal?
A Iniciativa Liberal, com alguns excessos e alguma ingenuidade um pouco adolescente, representa valores e interesses que que são relevantes. O PSD, na sua história já congregou, já teve liberais, teve sociais-democratas, gente um pouco mais à direita. Mas deixou de ter capacidade para aglutinar todas essas correntes e, portanto, surgiu a IL. Também digo no livro que a IL devia ter um magistério da defesa dos princípios da liberdade a todos os níveis, ser uma voz contra o estatismo que é muito forte no nosso país, contra um excesso de Estado e de intervenção do Estado, mas também com abertura para poder viabilizar governos do PS, como acontece com o Partido Liberal Alemão.

Preocupa-o a falta de uma oposição forte, nomeadamente do PSD?
Preocupa, sim. Sempre tivemos alternâncias entre um PS muito forte, de centro-esquerda, e um PSD de centro-direita, também forte, podendo agregar o CDS.

Esta alternância possibilitou que o país tivesse progredido. O problema de falta de crescimento económico, é ainda consequência do que se passou no período revolucionário. O facto de termos transitado de uma ditadura para a democracia de forma traumática, com um período em que se fizeram nacionalizações, destruição de tecido empresarial, fez com que perdêssemos os centros empresariais de influência, as grandes empresas e os grupos fortes. Isso tem condicionado muito o nosso crescimento económico e PS e PSD no governo não conseguiram fazer reformas em grau suficiente, para vencer esse défice que temos.

Nuno Melo ganhou o congresso do CDS. Como vê o futuro do partido?
Vejo a sobrevivência do CDS, neste momento, sinceramente bastante improvável. Porque quando uma empresa, uma associação, acaba por morrer, é difícil de ressuscitar e acho que o CDS deixou-se morrer. De facto, os votantes no antigo CDS, hoje estão no PSD, estão na IL e no Chega, e recuperar o eleitorado acho muito difícil.

Daniel Proença de Carvalho já foi um homem mais à esquerda do que é hoje. Já foi do PCP, vai para o PS após o 25 de Abril e hoje aprecia a IL. Vamos ao PS, como o avalia hoje?
Desde o 25 de Abril que a minha adesão inicial ao PS foi uma adesão natural. Era o partido social-democrata que correspondia ao meu estado de espírito na época, ou seja, deixei de acreditar nos amanhãs que cantam e tinha consciência das barbaridades que os partidos comunistas tinham cometido por esse mundo fora. Não tinha já nenhuma ilusão nesse aspeto, foi uma ilusão da minha juventude, muito fresca. Mas, mais tarde, quando saí do PS, em 1976, foi apenas porque assumi a direção de um jornal e achei que não era compatível ser diretor de um jornal e militante de um partido.

Depois nunca mais me inscrevi em nenhum partido e achei que, por um lado, não era bonito mudar de partido e, por outro, não me revia em fronteiras partidárias. Portanto, a minha posição foi sempre uma posição de social-democrata liberal.

Precisamos de mais liberalismo, menos Estado, mais liberdade de escolha, mais liberdade nos costumes, e uma vertente de justiça social que é absolutamente imprescindível num país que tem focos de pobreza. O Estado tem de proporcionar igualdade na saúde, na educação, na segurança social e na justiça. É essa a minha visão e foi sempre desde o 25 de Abril. Tenho votado muitas vezes num partido ou noutro, em função daquilo que no momento é a minha análise do que é mais útil ao país.

O PS corre o risco de voltar aos tiques da maioria absoluta?
As maiorias são favoráveis por darem estabilidade, muitíssimo importante para os empresários poderem fazer os seus investimentos e contar com o futuro. Posições de insegurança política, num país que ainda depende muito do Estado, é muito negativo. Não há soluções ideais, portanto esta é, apesar de tudo, a solução menos má.

Hoje, as democracias estão dotadas de contrapoderes que evitam excessos de abuso da parte de um partido com maioria absoluta. Temos o parlamento e a comunicação social que é hoje um fator importantíssimo de crítica e de avaliação permanente de todos os poderes.Temos os tribunais, os reguladores. Sinceramente não vejo que seja um problema. A utilidade de uma maioria absoluta é maior do que os eventuais problemas que ela possa gerar.

O que espera da maioria de Costa?
Gostaria e esperaria que fosse um governo reformista. Já não falo na justiça porque aí já perdi a esperança, mas quanto ao resto o país precisa de mais liberdade económica, melhores condições para as empresas crescerem.

Para isso acontecer, a política fiscal tem de ser amiga do empreendedorismo, o Estado tem de se reformar para ser muito menos burocrático, devia haver uma permanente e persistente atividade reformista para reduzir a burocracia a todos os níveis e facilitar a vida aos cidadãos.

É preciso criar liberdade de escolha e acho um erro, por exemplo, no caso da saúde e da educação, se ponha termo às parcerias público-privadas. E isso é apenas o resultado de um preconceito ideológico sem nenhum sentido. Na verdade, o que é importante é que o Estado garanta a todos a melhor saúde possível, agora, pode fazê-lo através dos hospitais públicos com gestão pública ou dos hospitais públicos com gestão privada. E aí a opção deve apenas ser resultado de qual é o que presta melhor serviço, avaliado pelos próprios utentes e por critérios objetivos, e qual é o que o faz com menor custo possível. Esta era uma análise única que deveria ser feita, mas esta análise está comprometida por preconceitos ideológicos da parte do PS e espero que isso acabe.

O fim da geringonça dá-lhe essa esperança na reconduzida ministra da Saúde e neste governo?
Gostaria que isso acabasse, mas não tenho a certeza de que isso aconteça. De momento, António Costa tem muito mais liberdade para tomar decisões sem esses constrangimentos. Na geringonça, Costa resistiu e as coisas correram relativamente bem, mas teve de pagar uma fatura.

Mudou de mão a economia, agora com o ministro António Costa Silva. O que não pode faltar nos próximos quatro anos e meio?
Penso que a grande preocupação deve ser criar um clima favorável a que as empresas se possam desenvolver, crescer, exportar, e a preocupação deve ser diminuir os obstáculos a que isso aconteça e favorecer um clima nesse sentido.

Claro que vai depender tanto dele como de outros ministérios, nomeadamente o Ministério das Finanças, e também o ministério que gere os fundos públicos europeus. Pedro Siza Vieira fez um excelente trabalho e tenho pena que não esteja no governo. Mas Costa e Silva também é uma personalidade por quem tenho grande apreço e é um gestor que conhece bem todo o meio.

Falando agora dos media, passou por vários meios como Jornal Novo, RTP e no Semanário esteve lado a lado com Marcelo Rebelo de Sousa e José Miguel Júdice. É uma fase da carreira marcante para si? Porquê?
A época do Jornal Novo foi de combate muito vivo e de um peso complexo e a RTP era um pouco a mesma coisa, ainda muito próximos de momentos em que não havia uma comunicação social madura, livre e independente, e foram períodos caracterizados por essa dureza.

O Semanário foi um projeto muito interessante pelas pessoas que o fizeram, tenho imensas saudades de Victor Cunha Rego. Depois, lidar com personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa e José Miguel Júdice é um permanente desafio. São personalidades muito independentes e é muito difícil condicionar qualquer uma, nomeadamente o José Miguel Júdice que agora está muito liberto. São pessoas que vivem intensamente a sua liberdade de pensar e exprimir.

O Semanário foi um projeto muito interessante porque tinha uma visão já um bocadinho diferente, de civilizar o regime, ainda estávamos num período em que havia um certo condicionamento do Conselho da Revolução e por aí fora. Proporcionava uma informação mais pró-liberdade, mais pró-mundo das empresas.

Nos media sentiu-se ameaçado na sua liberdade?
Não, nunca. Há pessoas que se sentem condicionadas por tudo. Li há tempos, não sei se foi no DN, que uma ministra [Constança Urbano de Sousa, ex-ministra da Administração Interna] se sentiu pressionada pelo Manuel Alegre e pela Maria de Belém Roseira. Confesso que sorri. As pessoas são livres, todas elas. Emitir opiniões é um direito de todos nós e não é condicionar, muito menos ameaçar.

O senhor foi ministro da Comunicação Social. Que conselho deixa a quem tutela hoje a pasta?
É preciso dizer que ser ministro da Comunicação Social era algo que se compreendia por ser aquela época, mas hoje em dia nenhuma democracia tem um ministro da Comunicação Social, seria até ridículo. Quando fui ministro, praticamente toda a comunicação social estava estatizada, televisão, rádio e quase todos os jornais. Portanto, a minha missão era retirar o Estado, libertar a comunicação social. Era preciso alguém que tivesse poderes para isso e daí ter sido ministério.

Hoje um governo deve estar atento e preocupado em, se possível, garantir condições do exercício do jornalismo livre e independente em Portugal. Do ponto de vista económico, hoje as condições são extremamente adversas, o que tem a ver com a mudança para o digital, com os grandes players digitais que absorvem uma enorme percentagem das receitas que tradicionalmente financiavam o setor.

Há hoje um tema que deve estar na agenda de todas as democracias, que é defender a imprensa e o jornalismo independente, porque este é absolutamente essencial à democracia. Especialmente quando sabemos que as redes sociais têm perigos gravíssimos para as democracias, de desinformação e níveis preocupantes de contaminação da opinião pública.

Foi presidente da RTP. Hoje há lugar para o serviço público de televisão?
Acho que sim. Lá está, sou liberal, mas acho que é bom a Caixa Geral de Depósitos estar no Estado e que a RTP seja uma televisão pública. Agora, isto tem de ter justificação, não pode ser uma televisão a competir em pé de igualdade e com o mesmo projeto editorial das privadas. Se for isso, então não faz sentido.

Na RTP impulsionou Moniz e Maria Elisa. O que terá ficado dessa escola, desse legado televisivo?
O tema que a Maria Elisa e eu teremos sido pioneiros, e que se desenvolveu extraordinariamente, terá sido o tema das novelas. Quando cheguei à RTP só se passava telenovelas brasileiras da Globo, tínhamos um único fornecedor. Era uma dependência muito forte e que, além disso, não era bom para os atores e para a criatividade dos portugueses. E, de facto, assumindo grandes riscos, desafiámos o Nicolau Breyner e o Thilo Krassmann a fazer uma novela portuguesa, Vila Faia. Quando disse ao Nicolau e ao Thilo olharam para mim com aquela cara de "este tipo deve estar maluco". No entanto, com a Vila Faia ganhámos as audiências às novelas brasileiras. Esse foi um tema que ficou.

Quanto ao jornalismo, tudo evoluiu para melhor. Quando cheguei à RTP havia muita influência política e partidária. Foi um período muito difícil, mas já passou e a liberalização mudou isso tudo. Hoje temos uma enorme liberdade, pluralismo, mesmo quando ouço falar em condicionamento da informação, confesso que me faz sorrir, porque felizmente é coisa que não existe em Portugal.

Que memórias guarda do período em que foi presidente não executivo do GMG e da ligação ao DN?
O Diário de Notícias teve ao longo da história, um papel essencial e primordial na informação e na opinião dos portugueses. É um jornal que nunca se enfadou totalmente a uma visão maniqueísta da sociedade e da política. E durante todo o período da democracia soube adaptar-se e evoluir. É fundamental que o DN continue a afirmar-se. É um jornal que leio todos os dias, que tem uma informação de grande rigor, não tem agendas políticas, nem justicialistas, nem persegue ninguém.

É um jornal independente que tem uma opinião diversificada, evitando opiniões facciosas. Espero que a GMG e o DN se fortaleçam e sejam, de facto, um grupo de imprensa forte. Tem títulos importantíssimos, com enorme força e presença no país: Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF, O Jogo.

Na advocacia foi pioneiro a internacionalizar o escritório. Porquê?
Quando abri um escritório internacional (2010) verifiquei que há muitas empresas e empresários estrangeiros que querem investir em Portugal e que precisam de ser acompanhados e porque há portugueses que se querem internacionalizar e precisam desse acompanhamento. A advocacia acompanha as necessidades do mercado.

Já foi considerado um dos homens mais poderosos do país. Em que patamar do ranking estará hoje?
Nunca me senti, confesso. E agora sou um pequeno agricultor que abandonou a advocacia, e que acompanha algumas atividades empresariais, o que me deixou muito tempo livre para poder escrever este livro, tocar mais música e para poder estar mais com a família.

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