Danças ibéricas macabras na Cornucópia
Depois de se ouvir os salmos da celebração do Ofício dos Mortos vêm as raparigas dançar. Cabelos soltos, vestidos rodados e chapéus coloridos. Mas a morte desce do púlpito e, envolta numa mortalha branca, dança também. É neste jogo de luta e sedução que assenta Dança de la Muerte, que se estreia hoje no Teatro da Cornucópia, em Lisboa, no âmbito do Festival de Almada. A autora é Ana Zamora, directora da companhia espanhola Nao d'Amores, que recupera formas teatrais de raiz popular.
Numa plateia circular, que recria os espaços cénicos do fim da Idade Média, Luís Miguel Cintra, Sofia Marques e Elena Rayos, e um trio de músicos, trazem para o presente uma das expressões artísticas mais populares dos séculos XV e XVI: as danças macabras. Espectáculo que nasceu quando a Europa morria de peste e a Igreja perdia fiéis para os rituais arcaicos.
Como diz Ana Zamora: "Estas danças, onde se cruzam reminiscências de rituais onde paganismo e cristianismo se juntam às celebrações da Igreja, marcam a matriz cultural ibérica. Fazia sentido num trabalho de co-produção."
A Dança de la Muerte não é, porém, pura dança, mas combinação de textos castelhanos anónimos com os Autos das Barcas, de Gil Vicente, entretecidos com músicas e ritmos resgatados em cancioneiros e arquivos. Ana Zamora não quer "fazer recriação histórica", mas "trazer evocações, perfumes da medievalidade".
Neste baile há lugar para todos: papas, juízes, guerreiros e lavradores. A cada um a sua dança, só a morte é igual para todos. Num registo ora trágico ora satírico, a encenadora procura "mostrar a relação ambígua, colectiva e individual, com a morte."
Luís Miguel Cintra, que se desdobra a falar castelhano e português, nas formas antigas, diz que a peça "permite um regresso a uma forma mais simples de representar e a um tempo em que a relação dos homens com as forças da natureza criava coisas nuito belas".
Em cena até dia 13, Dança de la Muerte segue para festivais espanhóis, entre eles o de Almagro, que se dedica à mostra de expressões teatrais antigas. No Outono, as danças voltam à Cornucópia.