Da espingarda ao satélite

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Recordo-me de ler um dia uma entrevista ao historiador João Paulo Oliveira e Costa e este dizer: "Vou ao Japão e vejo estátuas aos portugueses desde Tanegashima até Quioto." Se Quioto é referida por ser a tradicional capital japonesa (Tóquio só recebeu o imperador em 1868), já Tanegashima surge pela sua localização no extremo sul do arquipélago, mas também por causa do extraordinário contacto de civilizações que ali aconteceu em 1543.

Esqueça o veneziano Marco Polo e o tangerino Ibn Batuta, grandes exploradores dos séculos XIII e XIV, respetivamente. Ambos foram até à China, à qual Polo chamou de Cataio. Mas ninguém antes dos portugueses (há vários nomes possíveis para os pioneiros, até Fernão Mendes Pinto) foi à terra que o mercador veneziano, tendo dela ouvido falar, chamou de Cipango. Chegados como mercadores, os portugueses foram os primeiros europeus a pôr pé no Japão e isso mudou o país. Não é por acaso que Tanegashima ganhou o epíteto de ilha das espingardas, uma das novidades tecnológicas que os portugueses levaram aos japoneses e que estes, mostrando notável génio, não se limitaram a copiar, aperfeiçoando-as.

Vítor Sereno, embaixador de Portugal em Tóquio, publicou há dias no Facebook uma fotografia sua em Tanegashima a propósito da visita que fez para assinalar os 480 anos dessa descoberta mútua. Uma outra foto, também no Facebook da embaixada, mostra o nosso diplomata a visitar a Jaxa, a agência espacial japonesa, cujo principal centro é ali na ilha.

Se pensarmos que há menos de 500 anos os portugueses levaram a Tanegashima o primeiro exemplo de técnica moderna e hoje ali está o símbolo do mais avançado que a tecnologia japonesa é capaz de fazer, nomeadamente ao nível de desenvolvimento de satélites, é impossível não imaginar que uma indescritível, mas fascinante, correia de acontecimentos sucedeu entre 1543 e 2023.

As tais estátuas de que falava um dos nossos historiadores que melhor conhece a presença portuguesa no Japão são a prova de que no arquipélago é valorizado o legado vindo do pequeno país do extremo ocidental da Europa. Claro que a primeira influência científica no Japão foi a chinesa, também os holandeses tiveram um papel importante durante os 200 anos que o arquipélago se fechou ao mundo (reação ao sucesso do cristianismo levado pelos missionários portugueses) e, por fim, toda a Europa e os Estados Unidos inspiraram os japoneses no seu processo de modernização a partir de meados do século XIX, mas o contributo português, por pequeno que seja, é indesmentível. Luís de Almeida, cirurgião e, mais tarde, missionário jesuíta, foi o primeiro a praticar a medicina ocidental no Japão, onde abriu um hospital. Um dia, num artigo na revista Science, o agora imperador emérito Akihito, também fez referência ao contributo português, que durou até à expulsão em meados do século XVII.

Numa entrevista ao DN já este verão, Vítor Sereno mostrou-se convicto de que a permanente atração dos japoneses por Portugal, onde instalaram ao longo dos anos várias empresas, não é já só pela história e até se encontra num momento em que se pode concretizar em mais comércio e mais investimentos, pois, por exemplo, "há um interesse claro por parte dos empresários japoneses em projetos relacionados com energias renováveis".

Também no Facebook, ontem, data dos 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão, o embaixador Makoto Ota lembrou o dia 25 de agosto de 1543 e afirmou que, "nesse momento, ambos os povos deram início a um período de profícuas trocas comerciais e culturais, cujas influências têm perdurado, positivamente, até aos dias de hoje".

Que a terceira maior economia mundial - pátria de gigantes tecnológicos com a Toyota, a Mitsubishi, a Mitsui ou a Sony - veja Portugal como um país das oportunidades é excelente, ainda mais se o interesse se centrar nos setores mais avançados. E ficamos assim tanto a ganhar, afinal o Japão é o terceiro país que anualmente mais patentes científicas regista, só atrás da China e dos Estados Unidos, mas com muito menos população e sobretudo com um território muito mais pequeno, o que significa que o milagre japonês, lá longe, continua.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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