Da democracia na América
A frieza e a humildade são as melhores conselheiras do analista. Reconhecer que confiou novamente e em demasia na maior indústria de sondagens do mundo e que, apesar da prudência quanto ao desfecho, foi balizando as suas interpretações nesses dados. Reconhecer que os modelos clássicos de análise quantitativa dedicados a segmentos do eleitorado americano já não servem e que há "latinos e latinos", "mulheres e mulheres", "millennials e millennials", "classe média e classe média". E conceder que, pese embora o momento absolutamente crítico que os EUA e a Europa atravessam, há muitos milhões de pessoas que não partilham genuinamente os encantos das democracias liberais, da tolerância, da multietnicidade social e da abertura das economias à globalização.
Mais do que criticar quem não vê o mundo desta maneira e tem um apetite voraz pelo nacionalismo, protecionismo e radicalismo, é urgente fazer uma autocrítica sobre o modo como os políticos tradicionais têm "vendido" os benefícios do modelo liberal ocidental às suas populações. Não é possível continuar a insistir em líderes moderados com cadastro criminal. Não é possível que os grandes partidos cristalizem os seus piores vícios e sejam vistos apenas como plataformas clientelares. E não é possível continuar a abafar a prioridade que deve ser dada à economia real com uma encriptada narrativa financeira. O resultado está aí.
A vitória de Trump abre um mar de incertezas internas e externas, todas elas mais próximas do perigo do que do alívio. Legitima, tal como o referendo no Reino Unido, um discurso de ódio, xenófobo e agressivo, mais ao nível da selvajaria do que da urbanidade civilizacional. Mas, apesar de tudo, a América nasceu e cresceu em resposta ao absolutismo e à arbitrariedade política. Podemos não confiar em Trump e nas sondagens, mas temos de continuar a acreditar na democracia.