Homenzinhos verdes?...Com antenas?... Marionetas ou cérebros superdesenvolvidos?... A mitologia cinematográfica dos marcianos ensinou-nos a imaginar o planeta vermelho como a pátria distante de seres mais ou menos horripilantes, inadvertidamente burlescos, entregues a um único desporto: invadir o nosso querido planeta e exterminar os incautos humanos..Claro que a história dos filmes sobre Marte não se esgota em tal visão. De qualquer modo, foi ela que serviu de fundamento a um dos mais populares títulos "marcianos", pelo menos entre as gerações mais novas de espetadores: Marte Ataca! (1996), de Tim Burton, desenvolve-se como uma delirante comédia trágica que coloca em cena marcianos nada simpáticos face a uma estrutura de poder francamente pouco confiável - se é verdade que a obra de Burton não é estranha aos modelos da parábola política, Marte Ataca! constitui, por certo, uma das suas variantes mais insólitas e também mais contundentes..Entre comédia e drama, as aventuras do cinema em torno do planeta Marte têm um capítulo fundamental na produção da década de 1950. Podemos observar tal período como a antítese daquilo que, mais tarde, Steven Spielberg viria a celebrar em títulos como Encontros Imediatos do Terceiro Grau (1977) ou E.T. - O Extraterrestre (1982). Nestes casos, o alien não surge como uma ameaça letal, apresentando-se antes como uma entidade que, apesar da sua estranheza, chega à Terra com uma mensagem pacífica e até redentora. Ora, nos anos 1950, muitas histórias de seres "vindos do outro mundo" funcionaram como reflexo simbólico, calculadamente ambíguo, de um medo visceral: o do desenvolvimento da energia atómica e, no limite, do aniquilamento da raça humana..Aliás, tais histórias nem sempre foram sobre Marte e marcianos. Lembremos o exemplo paradigmático de The Thing (1951), de Christian Nyby, entre nós lançado como A Ameaça: A História de Um Violento Ser Extraterrestre (uma "coisa", como diz o título original), preservado nos gelos polares, possui um apelo dramático e uma vibração simbólica que, em 1982, levariam John Carpenter a assinar um remake, com o mesmo título original, entre nós identificado pelo sintomático subtítulo Veio do Outro Mundo..Referência incontornável é, obviamente, A Guerra dos Mundos (1953), de Byron Haskin. A adaptação do romance de H.G. Wells ficou mesmo como um acontecimento fulcral na relação do cinema com o imaginário marciano, de alguma maneira abrindo uma nova paisagem ficcional que tem sido regularmente explorada, quer pelo cinema quer pela televisão. Destaque inevitável vai para a versão de A Guerra dos Mundos assinada por Spielberg em 2005, com Tom Cruise e Dakota Fanning nos papéis principais; entretanto, em 2019, surgiram duas séries inspiradas no clássico de Wells: uma produzida pela BBC, situada no começo do século XX, outra de origem franco-americana, em cenários do nosso tempo.. A Guerra dos Mundos está, aliás, ligada a um especialíssimo acontecimento que pode muito bem resumir o apelo paradoxal da escrita de Wells. Aconteceu em 1938, sendo o seu principal responsável um dos mestres da história do cinema americano: Orson Welles (1915-1985). Na altura, ainda não era uma figura de Hollywood. A sua primeira longa-metragem, Citizen Kane - O Mundo a Seus Pés, muitas vezes citado como um título fundador da modernidade cinematográfica, surgiria apenas em 1941..Ainda assim, em 1938, Wells era já um ator prestigiado, graças ao Mercury Theatre que fundara, um ano antes, com o produtor John Houseman. Na rádio da CBS, coordenava The Mercury Theatre on the Air, uma emissão de "teatro radiofónico", com a duração de 60 minutos. No dia 30 de outubro foi emitida uma adaptação do romance de Wells, devidamente identificada logo na abertura (podemos escutá-la na íntegra em diversos domínios da net, incluindo a Wikipédia e o YouTube) - certo é que o programa interpretado pelos atores do Mercury Theatre, incluindo Paul Stewart e Ray Collins (que viriam a integrar o elenco de Citizen Kane), gerou uma onda de pânico, com muitos americanos a acreditarem que, realmente, os EUA estavam a ser invadidos por marcianos....Que aconteceu, então? Um desconcertante efeito de realismo: mesmo marcada pelos artifícios da ficção científica, a história contada em livro e retomada na emissão radiofónica mostrou-se capaz de relançar medos viscerais dos seres humanos, a ponto de se transformar num fenómeno global de inquietação, pânico... e, diríamos agora, agitação mediática. Num livro esclarecedor sobre tais vertentes históricas e culturais, Os Marcianos Somos Nós (ed. Gradiva, 2015), Nuno Galopim sublinha isso mesmo, lembrando que "a nossa representação de Marte" reflete, afinal, "como fomos tomando este planeta como cenário para falar do que somos, do que nos seduz ou nos assusta e do que queremos ou não queremos ser"..Não admira por isso que ainda ao longo da década de 1950 encontremos as personagens e temas marcianos tratados nos mais contrastados registos. Lembremos, por exemplo, uma comédia de uma dupla na época muito popular: Abbott e Costello Vão para Marte (1953), com realização de Charles Lamont. Ou Devil Girl from Mars (1954), de David MacDonald, produção centrada na figura de uma mulher marciana interpretada por Patricia Laffan, estrela efémera que se especializou em personagens mais ou menos perversas e vampirescas. Isto sem esquecer, claro, o clássico Invasores de Marte (1953), de William Cameron Menzies, ele que já tinha realizado A Vida Futura (1936), com argumento do próprio H.G. Wells a partir do seu livro The Shape of Things to Come. Curiosamente, neste nosso século XXI temos assistido a um certo revivalismo das epopeias em Marte. Para o melhor e sobretudo para o pior, têm sido os filmes de super-heróis a dominar o espaço da aventura cinematográfica, mas é um facto que a sedução do planeta vermelho não se dissipou..Duas produções do ano 2000 são reveladoras dessa aposta. Com resultados apenas convencionais, O Planeta Vermelho, de Antony Hoffman, com Val Kilmer, encena Marte como uma fonte de energia e materiais potencialmente úteis para uma Terra a agonizar. Bem mais interessante é Missão a Marte, de Brian De Palma, com Tim Robbins e Gary Sinise, odisseia de sobrevivência centrada num grupo empenhado em salvar os protagonistas de uma viagem que acabou em desastre.. Seja como for, houve quem tentasse injetar numa aventura em Marte o espírito (?) dos filmes de super-heróis. Foram os estúdios Disney que, em 2012, entregaram a Andrew Stanton, que correalizara À Procura de Nemo (2003), a adaptação de A Princess of Mars, um dos livros de Edgar Rice Burroughs cuja ação se localiza em Barsoom, precisamente a derivação ficcional através da qual o escritor imaginou o planeta Marte. Marcado por muitos problemas de conceção e produção, o filme transformou-se num pesadelo financeiro (custo: cerca de 260 milhões de dólares), desembocando num aparatoso desastre artístico e comercial..Num registo bem diferente, dramaticamente subtil e emocionalmente envolvente, podemos citar Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott, com Matt Damon a liderar um elenco de luxo que inclui Jessica Chastain, Jeff Daniels e Kate Mara. Vale a pena referir que o veterano Scott não é estranho às convulsões das aventuras no espaço - bastará lembrar que foi ele quem dirigiu o primeiro Alien (1979), entre nós intitulado O Oitavo Passageiro..O filme chama-se no original The Martian, mas o marciano é, desta vez, o próprio humano. Damon interpreta um astronauta que, na sequência de graves problemas técnicos com a sua nave, fica esquecido em Marte, uma vez que na Terra o dão como morto. Daí o duplo desafio da sua singular intimidade: por um lado, tem de aplicar a sua destreza e imaginação para gerir (ou semear!) os poucos alimentos que tem ao seu dispor; por outro, é imperioso que consiga enviar algum sinal para que no centro de comando da sua missão saibam que ele está vivo... Identificamo-nos, afinal, com a sua trágica solidão. Num dos registos da sua odisseia, surgem estas palavras cristalinas: "Sou a primeira pessoa a estar sozinha num planeta inteiro."
Homenzinhos verdes?...Com antenas?... Marionetas ou cérebros superdesenvolvidos?... A mitologia cinematográfica dos marcianos ensinou-nos a imaginar o planeta vermelho como a pátria distante de seres mais ou menos horripilantes, inadvertidamente burlescos, entregues a um único desporto: invadir o nosso querido planeta e exterminar os incautos humanos..Claro que a história dos filmes sobre Marte não se esgota em tal visão. De qualquer modo, foi ela que serviu de fundamento a um dos mais populares títulos "marcianos", pelo menos entre as gerações mais novas de espetadores: Marte Ataca! (1996), de Tim Burton, desenvolve-se como uma delirante comédia trágica que coloca em cena marcianos nada simpáticos face a uma estrutura de poder francamente pouco confiável - se é verdade que a obra de Burton não é estranha aos modelos da parábola política, Marte Ataca! constitui, por certo, uma das suas variantes mais insólitas e também mais contundentes..Entre comédia e drama, as aventuras do cinema em torno do planeta Marte têm um capítulo fundamental na produção da década de 1950. Podemos observar tal período como a antítese daquilo que, mais tarde, Steven Spielberg viria a celebrar em títulos como Encontros Imediatos do Terceiro Grau (1977) ou E.T. - O Extraterrestre (1982). Nestes casos, o alien não surge como uma ameaça letal, apresentando-se antes como uma entidade que, apesar da sua estranheza, chega à Terra com uma mensagem pacífica e até redentora. Ora, nos anos 1950, muitas histórias de seres "vindos do outro mundo" funcionaram como reflexo simbólico, calculadamente ambíguo, de um medo visceral: o do desenvolvimento da energia atómica e, no limite, do aniquilamento da raça humana..Aliás, tais histórias nem sempre foram sobre Marte e marcianos. Lembremos o exemplo paradigmático de The Thing (1951), de Christian Nyby, entre nós lançado como A Ameaça: A História de Um Violento Ser Extraterrestre (uma "coisa", como diz o título original), preservado nos gelos polares, possui um apelo dramático e uma vibração simbólica que, em 1982, levariam John Carpenter a assinar um remake, com o mesmo título original, entre nós identificado pelo sintomático subtítulo Veio do Outro Mundo..Referência incontornável é, obviamente, A Guerra dos Mundos (1953), de Byron Haskin. A adaptação do romance de H.G. Wells ficou mesmo como um acontecimento fulcral na relação do cinema com o imaginário marciano, de alguma maneira abrindo uma nova paisagem ficcional que tem sido regularmente explorada, quer pelo cinema quer pela televisão. Destaque inevitável vai para a versão de A Guerra dos Mundos assinada por Spielberg em 2005, com Tom Cruise e Dakota Fanning nos papéis principais; entretanto, em 2019, surgiram duas séries inspiradas no clássico de Wells: uma produzida pela BBC, situada no começo do século XX, outra de origem franco-americana, em cenários do nosso tempo.. A Guerra dos Mundos está, aliás, ligada a um especialíssimo acontecimento que pode muito bem resumir o apelo paradoxal da escrita de Wells. Aconteceu em 1938, sendo o seu principal responsável um dos mestres da história do cinema americano: Orson Welles (1915-1985). Na altura, ainda não era uma figura de Hollywood. A sua primeira longa-metragem, Citizen Kane - O Mundo a Seus Pés, muitas vezes citado como um título fundador da modernidade cinematográfica, surgiria apenas em 1941..Ainda assim, em 1938, Wells era já um ator prestigiado, graças ao Mercury Theatre que fundara, um ano antes, com o produtor John Houseman. Na rádio da CBS, coordenava The Mercury Theatre on the Air, uma emissão de "teatro radiofónico", com a duração de 60 minutos. No dia 30 de outubro foi emitida uma adaptação do romance de Wells, devidamente identificada logo na abertura (podemos escutá-la na íntegra em diversos domínios da net, incluindo a Wikipédia e o YouTube) - certo é que o programa interpretado pelos atores do Mercury Theatre, incluindo Paul Stewart e Ray Collins (que viriam a integrar o elenco de Citizen Kane), gerou uma onda de pânico, com muitos americanos a acreditarem que, realmente, os EUA estavam a ser invadidos por marcianos....Que aconteceu, então? Um desconcertante efeito de realismo: mesmo marcada pelos artifícios da ficção científica, a história contada em livro e retomada na emissão radiofónica mostrou-se capaz de relançar medos viscerais dos seres humanos, a ponto de se transformar num fenómeno global de inquietação, pânico... e, diríamos agora, agitação mediática. Num livro esclarecedor sobre tais vertentes históricas e culturais, Os Marcianos Somos Nós (ed. Gradiva, 2015), Nuno Galopim sublinha isso mesmo, lembrando que "a nossa representação de Marte" reflete, afinal, "como fomos tomando este planeta como cenário para falar do que somos, do que nos seduz ou nos assusta e do que queremos ou não queremos ser"..Não admira por isso que ainda ao longo da década de 1950 encontremos as personagens e temas marcianos tratados nos mais contrastados registos. Lembremos, por exemplo, uma comédia de uma dupla na época muito popular: Abbott e Costello Vão para Marte (1953), com realização de Charles Lamont. Ou Devil Girl from Mars (1954), de David MacDonald, produção centrada na figura de uma mulher marciana interpretada por Patricia Laffan, estrela efémera que se especializou em personagens mais ou menos perversas e vampirescas. Isto sem esquecer, claro, o clássico Invasores de Marte (1953), de William Cameron Menzies, ele que já tinha realizado A Vida Futura (1936), com argumento do próprio H.G. Wells a partir do seu livro The Shape of Things to Come. Curiosamente, neste nosso século XXI temos assistido a um certo revivalismo das epopeias em Marte. Para o melhor e sobretudo para o pior, têm sido os filmes de super-heróis a dominar o espaço da aventura cinematográfica, mas é um facto que a sedução do planeta vermelho não se dissipou..Duas produções do ano 2000 são reveladoras dessa aposta. Com resultados apenas convencionais, O Planeta Vermelho, de Antony Hoffman, com Val Kilmer, encena Marte como uma fonte de energia e materiais potencialmente úteis para uma Terra a agonizar. Bem mais interessante é Missão a Marte, de Brian De Palma, com Tim Robbins e Gary Sinise, odisseia de sobrevivência centrada num grupo empenhado em salvar os protagonistas de uma viagem que acabou em desastre.. Seja como for, houve quem tentasse injetar numa aventura em Marte o espírito (?) dos filmes de super-heróis. Foram os estúdios Disney que, em 2012, entregaram a Andrew Stanton, que correalizara À Procura de Nemo (2003), a adaptação de A Princess of Mars, um dos livros de Edgar Rice Burroughs cuja ação se localiza em Barsoom, precisamente a derivação ficcional através da qual o escritor imaginou o planeta Marte. Marcado por muitos problemas de conceção e produção, o filme transformou-se num pesadelo financeiro (custo: cerca de 260 milhões de dólares), desembocando num aparatoso desastre artístico e comercial..Num registo bem diferente, dramaticamente subtil e emocionalmente envolvente, podemos citar Perdido em Marte (2015), de Ridley Scott, com Matt Damon a liderar um elenco de luxo que inclui Jessica Chastain, Jeff Daniels e Kate Mara. Vale a pena referir que o veterano Scott não é estranho às convulsões das aventuras no espaço - bastará lembrar que foi ele quem dirigiu o primeiro Alien (1979), entre nós intitulado O Oitavo Passageiro..O filme chama-se no original The Martian, mas o marciano é, desta vez, o próprio humano. Damon interpreta um astronauta que, na sequência de graves problemas técnicos com a sua nave, fica esquecido em Marte, uma vez que na Terra o dão como morto. Daí o duplo desafio da sua singular intimidade: por um lado, tem de aplicar a sua destreza e imaginação para gerir (ou semear!) os poucos alimentos que tem ao seu dispor; por outro, é imperioso que consiga enviar algum sinal para que no centro de comando da sua missão saibam que ele está vivo... Identificamo-nos, afinal, com a sua trágica solidão. Num dos registos da sua odisseia, surgem estas palavras cristalinas: "Sou a primeira pessoa a estar sozinha num planeta inteiro."