Curso intensivo de Morricone
Como captar o génio e o nível de produtividade de um compositor que assinou bandas sonoras para quase cinco centenas de filmes? Talvez com uma miríade de cabeças falantes, uma longa entrevista com o próprio e excertos de filmes que podemos ver de olhos fechados, apenas ouvindo aqueles primeiros acordes, assobios ou instrumentos de sopro que eternizaram as imagens. Ennio, o documentário que hoje faz as honras de abertura da Festa do Cinema Italiano, conta com tudo isto, numa inevitável expressão épica e convencional, mas consegue ir um pouco para além do programa obrigatório quando se deixa moldar pela inquietação artística permanente de Ennio Morricone (1928-2020). "É um dos elementos que explica o porquê de a sua música ser tão rica. Não houve momento algum em que ele se tenha sentido calmo. Havia esse conflito de criar a música e também tentar torná-la acessível para as pessoas. Por fim, compreendeu que a música de cinema é contemporânea." As palavras do realizador, Giuseppe Tornatore, à revista Variety não podiam ser mais esclarecedoras sobre esses bichos-carpinteiros que sentimos ao longo das duas horas e meia do documentário.
Logo no início vemos Morricone a mover-se pela casa num passo acelerado que dá conta da tal energia estranha concentrada no corpo de um homem de 90 anos (ou perto disso). E este simples prólogo acaba por fazer todo o sentido quando ouvimos relatos sobre a forma espontânea como criava música ou quando o ouvimos trautear os seus temas em jeito didático, à medida que vai explicando a combinação das notas e narrando a história interminável da sua vida profissional. A mesma que não existiria se o pai não o tivesse posto a estudar trompete, contrariando o sonho do rapaz que queria ser médico.
É difícil imaginar que médico teria sido Morricone, mas é fácil perceber, nomeadamente através do seu gosto pelo xadrez, que tinha um instinto apurado. Realizadores como Bernardo Bertolucci, Dario Argento, os irmãos Taviani, o próprio Tornatore, compositores como Hans Zimmer, John Williams, Nicola Piovani, ou mesmo Bruce Springsteen, Clint Eastwood, Dulce Pontes, todos estes e mais umas dezenas de entrevistados surgem numa montagem acelerada de frases-chave que montam o puzzle da musicalidade intrínseca de Ennio. Um documentário que só fica com os motores plenamente aquecidos quando passa à magia do cinema e percorre os segredos da lendária colaboração com Sergio Leone e a crescente inovação melódica de Morricone, até ao Óscar pela banda sonora de Os Oito Odiados (2015), de Tarantino - que já soou a consagração tardia.
Uma das curiosidades mais sumarentas que Morricone por aqui conta tem que ver com Stanley Kubrick: encantado com a banda sonora que o compositor italiano assinara para o filme Inquérito a Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970), de Elio Petri, o cineasta americano tê-lo-á contactado para compor um tema semelhante para Laranja Mecânica. Seria um encontro de gigantes.
Mas foi impedido por Leone, que mentiu dizendo a Stanley Kubrick que Ennio estava naquele momento a trabalhar para ele... Como o recorda Il Maestro, foi a única colaboração que lamentou nunca ter acontecido.
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