Cuidados primários: "Não podemos ser só nós a vacinar. Utentes esperam cada vez mais"
Há cinco meses que o país iniciou o plano de vacinação contra a covid-19. O planeamento incluiu desde o início os profissionais dos cuidados primários, médicos, enfermeiros e administrativos. Na altura, foram muitos os alertas sobre o impacto que tal iria ter na atividade programada destas unidades de saúde, que já fazem rastreio à covid-19, acompanhamento à maioria destes doentes e prestam todos os os outros cuidados de vigilância e saúde familiar.
No início do processo de vacinação, o governo pediu a cada Administração Regional de Saúde (ARS) que fizesse um balanço da capacidade instalada para aferir os recursos que seriam necessários para levar a cabo esta tarefa. E o resultado foi mesmo anunciado: seriam necessários mais 1700 profissionais, além dos já escalados, para cumprir as metas definidas até ao fim do plano - primeira, segunda e terceira fases (vacinação em massa para a população abaixo dos 60 anos anos).
Na altura, vários governantes afirmaram que acreditavam ser possível resolver a situação com recursos dos quadros do próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS). O certo é que, e como diz o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), "a vacinação continua a ser uma tarefa quase "exclusivamente" dos cuidados primários, tirando uma ou outra exceção em que colaboram outros profissionais".
Ao fim de cinco meses, com a tarefa de vacinação massiva pela frente e para ser levada a cabo durante os meses de verão, a situação só tem tendência agravar, devido ao período de férias que se aproxima.
Nuno Jacinto diz ao DN: "Se nada for feito ou definido centralmente sobre os outros recursos do SNS ou do sistema de saúde que podem e devem colaborar nesta tarefa, estamos a resolver um problema criando outro. Os utentes esperam cada vez mais e há cuidados que continuam a ficar cada vez mais para trás."
Nesta quarta-feira, o governo publicou o despacho que autoriza a contratação de 2474 profissionais para o SNS. Destes, 1366 são enfermeiros, mas ninguém sabe quando ou quantos destes se destinam à tarefa da vacinação.
O que continua a verificar-se, sublinha o médico, "é que os centros de vacinação funcionam todos, ou quase todos, única e exclusivamente com profissionais dos centros de saúde, num esforço cada vez maior, com a necessidade de recorrer a horas extra, embora já nem seja o trabalho extraordinário que está em causa, é, sim, a atividade assistencial aos utentes das unidades de família que está cada vez mais a ficar comprometida".
Reforçando: "A questão é que já não há meios para tudo nem mais horas para se fazer trabalho extraordinário. As ARS sabem-no e a task force também." Portanto, "não podemos continuar a ser só nós, cuidados primários, a assegurar a vacinação. Tem de haver outros médicos, outros enfermeiros e administrativos. A tarefa tem de ser partilhada com outros recursos do SNS e do sistema de saúde, mas isso tem ser definido centralmente, e não foi feito até agora".
A mensagem dos médicos de família é clara. E surge, mais uma vez, depois de em abril terem feito outro alerta e outro retrato do que se estava a passar nos cuidados primários, já que em abril, e para preparar a fase de vacinação massiva, "o governo voltou a pedir às ARS que fizessem novo balanço da capacidade existente e necessária para a fase de vacinação que se seguia. As ARS pediram aos Agrupamentos de Centros de Saúde [ACES] para o fazerem e o cenário traçado foi o mesmo do inicial. São precisos outros profissionais para esta tarefa. Quem está no terreno sabe que esta é a realidade, e acredito que quer os ACES quer as ARS o transmitiram aos governantes".
Mas o planeamento que chegou aos ACES para a fase que agora está a ser iniciada - e que, como anunciou o coordenador da task force, vice-almirante Gouveia e Melo, deverá envolver a administração de 114 mil vacinas por dia - continua a contar só com os profissionais dos cuidados primários.
"Há centros de saúde que tiveram de aumentar o número de horas diárias de colegas nos centros de vacinação ou o número de dias, porque já estamos a entrar na fase que, teoricamente, é a fase massiva e os centros de vacinação já alargaram o seu horário ou passaram a estar abertos durante mais dias. Ou seja, passámos a ter mais colegas na mesma semana com mais turnos em centros de vacinação ou com mais horas durante o dia."
Por isso, sublinhou, "achar que os centros de saúde vão conseguir responder a este planeamento só com os recursos humanos que têm enquanto mantêm a sua atividade assistencial nas unidades de origem não faz sentido. É completamente impossível. Hoje, um utente já não tem vaga para uma consulta ou outro tipo de cuidado daí a uma semana ou um mês, já tem de esperar mais e é o que vai continuar acontecer enquanto durar a vacinação, se nada mudar".
No início da semana o Sindicato Independente dos Médicos lançou um apelo ao Presidente da República e ao primeiro-ministro sobre o facto de haver mais de 400 médicos de família, 2 mil enfermeiros e 2 mil assistentes operacionais "amarrados" a esta tarefa, impedindo-os de estar nos centros de saúde e "tratar os seus doentes".
O presidente da APMGF disse ao DN não ter números precisos sobre quantos profissionais dos cuidados primários estão nesta tarefa, mas "o importante não é tanto o número absoluto é mesmo o tempo despendido na tarefa que está claramente entregue aos centros de saúde", reforçou. Agora, ainda mais, já que "o alargamento de horários levou a que fossem precisos mais médicos, mais enfermeiros, mais administrativos, mais assistentes operacionais, para os assegurar".
A aumentar o tempo despendido só à vacinação estão as formas de convocatória da população que não têm ajudado, fazendo os profissionais perderem muito tempo com este procedimento. "Na primeira fase, a convocatória por SMS não ajudou. As pessoas não respondiam. Agora, há o auto agendamento, mas não está a funcionar em algumas zonas. Há agendamentos de utentes sobrepostos e para dias em que os centros estão fechados. Só isto está a dar-nos mais uma grande sobrecarga. São as unidades de saúde que acabam por ter de resolver o agendamento."
Até agora, o trabalho levado a cabo no processo de vacinação tem sido elogiado por muitos. O bastonário dos médicos e outros especialistas já vieram afirmar publicamente que Portugal estava no bom caminho para atingir a imunidade de grupo mais cedo do que o previsto. Gouveia e Melo já referiu que tal poderá acontecer já no início do verão e não no final, como estava previsto.
Mas nos cuidados primários, continua-se à espera dos recursos extra que possam ajudar estas equipas. Nuno Jacinto admite que não é fácil recrutar profissionais, porque "o problema é que também não há profissionais para contratar e para cumprirem os horários de vacinação". No início da pandemia, os cuidados primários ainda tiveram o apoio de médicos de família reformados, mas agora "os colegas não conseguem dar mais horas para apoiarem na vacinação".
Desde o início que a pandemia veio colocar a descoberto fragilidades nos cuidados primários. A falta de recursos humanos é uma das mais preocupantes e vai ter o seu impacto na saúde dos portugueses. Aliás, o presidente da APMGF já diz: "O impacto vai sendo cada vez maior. Primeiro tivemos de acompanhar a maioria dos doentes com covid, depois veio a vacinação, começou com uma fase mais pessoal, agora passou para a fase de larga escala, e, por exemplo, em relação aos enfermeiros, há cada vez mais profissionais fora das suas unidades, o que significa que há maior dificuldade em fazer as tarefas programadas, como vigilância da saúde infantil, rastreios, etc. As pessoas não podem estar em dois sítios ao mesmo tempo e há coisas que ficam forçosamente para trás." E, como já o disse, "a solução não é o trabalho extraordinário porque as pessoas não resistem, já trabalham demasiadas horas".
Os alertas têm sido constantes, chega-se a uma fase crucial da vacinação para proteger o máximo possível de população e alcançar-se a imunidade de grupo, mas os "recursos extras ainda não chegaram e continuamos a navegar à vista", comentou Nuno Jacinto. A atividade programada fica cada vez mais comprometida, números concretos ainda não os há, "só mais para a frente, mas teremos de os comparar com 2019, para saber o que fizemos e a que ritmo, porque 2020 foi um ano muito atípico".
Agora, há mais um impacto a contabilizar nos cuidados de saúde, o da vacinação. "Claro que vai ter impacto nos cuidados. Nos centros de saúde já não tínhamos horas livres que pudéssemos despender de um momento para o outro." No entanto, Nuno Jacinto ainda acredita que alguma coisa poderá mudar na logística. "Acreditamos sempre que é possível melhorar e corrigir coisas que estão menos bem."