Crónicas e reportagens de Raul Brandão reunidas em livro

Os textos dispersos de Raul Brandão, publicados entre 1891 e 1930, podem ser agora lidos em "A pedra ainda espera dar flor", coletânea organizada por Vasco Rosa, que se dedica a esta "arqueologia literária", há uma década.
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São quase 500 páginas de retratos de viagem, opiniões sobre livros e escritores, reportagens, crónicas, memórias, "perdidos" por cerca de 40 publicações, que o editor Vasco Rosa reuniu num volume editado pela Quetzal, a apresentar quinta-feira, no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa.

A recolha culmina quase uma década de investigação dedicada a Brandão, que já tinha resultado nos volumes "Lume sobre cinzas" e "Paisagem com figuras", com outros dispersos do autor.

"Posso dizer que aproveitei um imenso e notório vazio, criado pela desatenção editorial --- que tem décadas --- à obra jornalística do escritor tão original que foi Raul Brandão", afirmou Vasco Rosa, em entrevista por "email" à Lusa.

Para a busca em velhos jornais, o ensaísta revela que foi fundamental a biografia do escritor, de Guilherme de Castilho -- "Vida e obra de Raul Brandão" -, já com 40 anos, assim como as pistas de estudos mais recentes, de reconhecidos "brandonianos", como José Carlos Seabra Pereira, Vítor Viçoso e Maria João Reynaud.

De qualquer forma, para Vasco Rosa, "a intuição e o acaso levam também a boas descobertas, que são, aliás, as mais gratificantes".

"Por exemplo, quando fui ler o obituário de O Século, encontrei referência à resposta de Brandão a um inquérito sobre a mulher portuguesa, de meses antes, e que é um dos textos mais instigantes desta nova edição, e que sugiro ter sido a mola inspiradora do famoso inquérito de Maria Lamas", lembrou Vasco Rosa.

O resultado é uma descoberta que, na opinião do investigador, nos permite "dizer mais claramente" que Brandão "foi um precursor em diferentes frentes": "na exposição visceral do mistério e do privilégio da vida", "na capacidade de ter ajudado a inventar a açorianidade com 'As Ilhas Desconhecidas'", "na atenção às gentes do mar, apartada da nossa literatura, até ao folhetim 'História do batel Vai com Deus e da sua campanha', apesar do país atlântico e insular que somos", vinte anos antes de "Os Pescadores".

Brandão representa ainda, segundo Vasco Rosa, a "vontade de renovação ou recriação do Teatro, com textos de crítica e teoria, a par de obras ímpares", como "O Doido e a Morte", que considera "uma obra-prima", à semelhança de "O Gebo e a Sombra".

Vasco Rosa, para quem Raul Brandão é "um gigante em muitos sentidos", é muito crítico de "uma universidade que vive em circuito fechado, não pensa, não avalia o que falta fazer".

"Quando aparece uma recolha de dispersos de um escritor com a magnitude e o carisma de Raul Brandão (e podia ser outro deste calibre), os académicos e professores de literatura, que vivem a repisar os mesmos temas, numa perpétua 'mastigação', preferem ser-lhe indiferentes", lamenta.

"Os estudos literários em Portugal estão em franco declínio, desapareceram os grandes professores e críticos, e ninguém apareceu com idêntica lucidez e estofo" afirma, acreditando que "há figuras medianas, que prevalecem, que vão a todas e mais alguma, mas deixam a desejar".

Com trabalhos como "A pedra ainda espera dar flor", Vasco Rosa prova que "o passado conservado nos jornais, está ainda e sempre por descobrir", e espera que, com ele, se demonstre "a importância da conservação (e digitalização) da imprensa de todos os tempos".

Para Vasco Rosa, que já organizou livros de Alexandre O'Neil e Vítor Cunha Rego, não falta matéria-prima, na nossa literatura, para mais volumes com textos nunca publicados em livro.

A tarefa, porém, não é fácil, pois, como afirma, "os editores atuais perderam, em grande parte, o vínculo aos escritores do nosso cânone literário, cuja obra está a ser negligenciada, silenciosa e paulatinamente, em favor do que nunca ficará".

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