Muita tinta já fez correr este Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun (insólito longo título português para The French Dispatch). E, no geral, há uma incompreensão quase monocórdica sobre o novo filme de Wes Anderson, realizador que tem sido confundido com um mero construtor de "casinhas de bonecas", dada a aparência colorida e ordenada do que é colocado dentro dos seus artificiosos enquadramentos - que neste caso se podem equiparar, com razão de ser, às capas da revista The New Yorker. Dito isto, não deixa de ser curioso que tal argumento de desvalorização acabe por se tornar, ele próprio, um pouco decorativo, na medida em que se acomoda e não toma a iniciativa de partir a parede (algo que acontece, literalmente, algumas vezes no filme) para entrar na casa de bonecas e ver mais de perto o que passa nas entrelinhas do caderno de imagens andersoniano..Ao começar Crónicas de França com o obituário do editor de uma revista cuja publicação cessará com o seu desaparecimento, Anderson faz um filme sob o signo da morte. O sentido da perda está lá desde o princípio e infunde cada plano com uma melancolia disfarçada pela rapidité característica das rotativas. Afinal, este é um filme que se apresenta como uma derradeira edição impressa, um corpo de papel que se "folheia" na hora da despedida. Estamos no século XX, a revista em causa é americana, chama-se The French Dispatch, o seu editor com morte anunciada é Arthur Howitzer Jr. (Bill Murray), e a redação está sediada numa cidade francesa com o espirituoso nome Ennui-sur-Blasé. Para as suas páginas escrevem Sazerac (Owen Wilson), Berensen (Tilda Swinton), Krementz (Frances McDormand) e Roebuck Wright (Jeffrey Wright), jornalistas expatriados que assinam as quatro peças, de diferentes secções - diário de viagem, arte, política e gastronomia -, que compõem o filme-obituário. Quem espera o simples "Era uma vez...", porém, pode ficar desconcertado com o cubismo narrativo de Crónicas de França..Este objeto estranho, mas perfeitamente coerente com a obra de Wes, resulta de uma ideia que o realizador já há muito tempo tencionava levar ao grande ecrã. Essa ideia era uma soma de três aspetos: o filme-antologia ao jeito de O Prazer, de Max Ophüls, ou O Ouro de Nápoles, de Vittorio De Sica (este último escolhido e apresentado pelo próprio na edição de 2014 do LEFFEST), uma homenagem à The New Yorker e ao cinema francês. A verdade é que The French Dispatch, combinando a paixão assolapada do cineasta texano pela publicação nova-iorquina e uma capacidade única de citar filmes franceses de forma torrencial, resulta num dos seus trabalhos mais sentimentais (à falta de melhor palavra), que recusa o tempo todo a emoção em público. Ou não houvesse uma placa de aviso no gabinete do editor: "No crying"..Em entrevista à The New Yorker (claro), Anderson não define exatamente Crónicas de França como uma carta de amor ao jornalismo, expressão que circulou quando ainda só era conhecido o trailer. "É um filme. Mas é sobre jornalistas que significaram algo para mim. Durante a primeira metade da minha vida, pensei na The New Yorker sobretudo como um espaço para ler ficção, o filme que fizemos é todo ficção. Nenhum dos jornalistas realmente existiu e as histórias são todas inventadas. Fiz um filme de ficção sobre reportagem." Reportagem com toque de romantismo enxuto e nobreza à antiga, do tempo em que os jornalistas se imiscuíam no caos - veja-se a repórter de McDormand no meio de uma revolta estudantil..É tudo inventado, sim, mas as personagens foram talhadas a partir da personalidade e estilo de escrita dos redatores que fascinaram o realizador. Por exemplo, Roebuck Wright, o jornalista afro-americano e homossexual responsável pela crónica de gastronomia - que envolve um jantar em casa de um comissário da polícia (Mathieu Amalric), dando lugar a um conto noir cheio de ação - é uma figura inspirada no escritor James Baldwin, voz marcante da revista nova-iorquina. Por sinal, autor de um ensaio aí publicado em 1962, Letter from a region in my mind ("Carta de uma região na minha mente"), cujo título também pode ser roubado para se pensar o filme. Quer dizer, The French Dispatch não é uma carta, mas crónicas de uma região na mente de Wes Anderson, realidade imaginada a partir de um sério faz-de-conta. Uma fantasia só possível no mapa cerebral do cineasta que melhor sabe surripiar a outros cineastas do passado - veja-se aqui o manancial de referências, de Tati a Godard, passando por Jacques Becker ou Julien Duvivier - sem se apagar no gesto da citação..É por isso que, dentro do seu fabuloso excesso informativo, ou criativo, Crónicas de França não se parece com nada a não ser com um engenho de Wes Anderson. Um filme que burila a nostalgia em personagens com assumida espessura de papel, como se o enterro de um editor fosse um cerimonial de histórias elaboradas por um olhar de criança-prodígio. Ser culto, cinéfilo e um maníaco dos detalhes, em movimento perpétuo de memória, são atributos que ainda criam equívocos em relação a Wes. Deste lado, aceitou-se o convite para partir paredes de casas de bonecas e respirar o saudoso ar francês de uma região na sua mente traquina. Ah, abençoada!.dnot@dn.pt