Zigurfest, um festival que faz das ruas palco

Durante quatro dias, o centro histórico de Lamego tornou-se um imenso palco, ou melhor, em vários, pelos quais passaram nomes como Filipe Sambado & Os Acompanhantes De Luxo, Glockenwise ou Krake + Adolfo Luxúria Canibal.
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"Que vista tão bonita", desabafa Maio Coopé para os companheiros dos Djumbai Djazz, poucos minutos antes de subir ao palco. Como palco, entenda-se a varanda panorâmica do horto do castelo de Lamego, um pequeno jardim com vista para as serranias vizinhas, tão diferentes e tão distantes da Guiné-Bissau natal do líder da banda. O momento, ali pelo fim da tarde de sexta-feira, resumia na perfeição o lema do Zigurfest, um festival surgido há nove anos, pela mão de um grupo de amigos, hoje quase todos a viver fora da cidade, que tem como lema "em cada rua um palco, em cada palco uma descoberta".

Foram muitos os que descobriam a música dos Djumbai Djazz, uma mistura de tradição com modernidade, tal como este Zigurfest, que durante quatro dias transforma o centro histórico de Lamego num imenso palco, ou melhor, em vários, dentro e fora de portas, dando a conhecer não só a cidade, como outras realidades, artísticas e sociais, à própria cidade. "Esta é para dançar", avisou entretanto Maio Coopé e todos os que até então se mantinham sentados na relva levantaram-se de imediato, transformando o relvado numa improvisada pista de dança, mantendo-se assim durante o espetáculo seguinte, a cargo da dupla portuense Minus and Mr Dolly. Beats orelhudos, muito groove e samples certeiros de jazz, funk, hip-hop e algum house, tal como haviam apresentado no aclamado álbum Man With a Plan, editado no início do ano, mas que neste sol-posto quente, de verão, foi a banda sonora perfeita para embalar os corpos e dar vontade de beber mais um fino ou um copo de vinho branco.

Este ano, os espetáculos do Zigurfest, todos de entrada livre, realizaram-se em sete locais diferentes: Casa do Artista, Oficinas do Museu de Lamego, Rua da Olaria, Parque Isidoro Guedes, Auditório do Teatro Ribeiro Conceição, Horto do Castelo e Castelo de Lamego. Além de permitir descobrir a cidade, o festival aposta também numa "programação de antecipação", como a define Afonso Lima, o diretor executivo do Zigurfest, que pretende dar a conhecer nomes emergentes da música portuguesa. Foi aqui, por exemplo, que se apresentaram nomes como Luís Severo ou Sensible Soccers, quando ainda davam os primeiros passos. Essa é aliás uma das grandes vitórias deste festival, organizado numa cidade do interior e que, ano após ano, prova que o alternativo também pode ser popular, com concertos cheios, monumentos e jardins transformados em palcos e gente a circular por todo o lado.

Desde há alguns anos que o Zigurfest está integrado na programação das Festas de Nossa Senhoras do Remédios, também conhecidas como a "Romaria de Portugal", que pela mesma altura também se realizam na cidade. O festival acaba por funcionar assim como "uma espécie de lado B da romaria, porque também ele já se tornou para muitos lamecenses, especialmente para um nova geração que teve de ir estudar ou trabalhar para fora, uma tradição e um motivo de regresso a casa por alguns dias", afirma Afonso Lima. Não é por isso de estranhar que, por vezes, um concerto do Anjos, por exemplo, possa coincidir com as atuações, digamos, mais alternativas do Zigurfest, como aconteceu este ano. Nem isso, no entanto, impede que o Teatro Ribeiro da Conceição tenha lotação esgotada para assistir aos espetáculos dos Terebentina ou de Filipe Sambado e os Acompanhantes de Luxo.

Com o avançar da noite, todos os caminhos vão invariavelmente dar à Rua da Olaria, não só por ser a zona onde a maior parte dos estabelecimentos de animação noturna de Lamego se concentra, mas também para assistir a mais alguns concertos. Por esta altura, o público do festival mistura-se com os frequentadores habituais da zona, que mesmo não conhecendo assim tão bem as propostas musicais apresentadas, também não deixa de fazer a festa. Afinal, este é um festival de descobertas, não é? E foi isso mesmo que aconteceu nessa noite, com o pós-punk dos lisboetas 3130 ou a descarga punk-hardcore dos Algumacena, um projeto no qual se juntam o baterista Ricardo Martins (Jibóia e Pop Dell"Arte) a Alex D"Alva Teixeira - esse mesmo, o vocalista dos tão pop D"Alva -, que provocou uma explosão de mosh e stage-diving no improvável cenário medieval da rua da Olaria. "Fascistas não passarão", grita Alex, desde o meio do público, antes de fazer um curto discurso sobre o valor da tolerância nos dias de hoje, provocando uma explosão de gritos e aplausos. A noite ficaria concluída com a atuação de Odete, uma artista transgénero tão etérea quanto visceral, tal como a sua música, obrigatória de conhecer.

Para o último dia de Zigurfest, estava marcada uma estreia absoluta, que teria como cenário o interior do Castelo de Lamego, pela primeira vez integrado no roteiro do festival. Os protagonistas eram Adolfo Luxuria Canibal e Krake, o alter-ego musical de Pedro Oliveira, dos Peixe:Avião, que acompanhou à bateria e com percussões várias as narrativas declamadas pelo vocalista dos Mão Morta, num espetáculo teatral e cinematográfico, concebido em exclusivo para esta ocasião. "Bravo", ouve-se por diversas ocasiões, quando Adolfo termina de contar as histórias de personagens ambíguas como "Crespos", o homem que "durante 34 anos seis meses e sete dias" se sentou no café a Brasileira, em Braga, para observar os hábitos da cidade, acabando por morrer engasgado com toda a informação recolhida. Pelo contrário, Minda Guevara, a artista que se seguiu, torna tudo o que a rodeia em música e não deixa nada por dizer, apesar de nem todos a entenderem, como a própria fez questão de esclarecer, mal sobe ao palco. "O meu nome é Minda, venho da Cova da Moura e sou uma rapper que canta em crioulo. Vocês não vão perceber patavina do que digo, mas espero que sintam". E sim, toda agente sentiu, ao ponto da multidão acabar o concerto a gritar "Minda Guevara female power", obrigando a artista a regressar para um encore.

Como já tradição, os derradeiros espetáculos tiveram lugar no Palco Alameda, no bonito cenário verde do Parque Isidoro Guedes, por onde passaram os barcelenses Glockenwise, um dos nomes mais consensuais da nova música portuguesa, como um dia se espera que Chinaskee e os Camponeses venham a ser. E se não conseguirem, que se lixe, porque quem os viu ali, naquele fim de noite, viu algo de muito especial. Uma total loucura rock cada vez mais em desuso, com a banda, vestida de fato-macaco vermelho, a fazer uma espécie de música de intervenção para o século XXI. O espetáculo contaria ainda com uma improvisada participação de Alex D"Alva Teixeira (que saltou literalmente para o palco) e de Primeira Dama. Ouviram-se também uma versão dos Pixies (Is She Weird) e uns laivos de António Variações. "É tão bom viver aqui na cidade onde nasci", canta entretanto Chinaskee, substituindo a "Lisboa" da letra original do single Dia de Praia por "em Lamego sou feliz", numa despedida perfeita para um "festival à margem da geografia e da programação", como alguém, num qualquer palco em Lamego, definiu por estes dias o Zigurfest.

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