Cristina Madruga e Silva: A emoção de um parto em pandemia

Testemunho de uma enfermeira obstetra da Maternidade Alfredo da Costa.
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Estava a fazer tarde de 15 de março de 2020, e seguia noite... A equipa multidisciplinar de toda a Maternidade Alfredo da Costa (MAC) nos últimos dias esteve em grande dinâmica para criar um espaço adequado para receber senhoras grávidas, parturientes, puérperas ou senhoras com outras situações ginecológicas que necessitassem de internamento e se encontrassem ou com suspeita ou confirmação de infeção por covid 19.

Circuitos já definidos, tudo a postos para serem inaugurados na manhã de dia 16...

Mas... a inauguração foi, sim, no dia 16 de março de 2020, mas cerca das 00h30, precocemente... o que fora motivado pela necessidade assistencial de uma senhora que, quando chegou até nós, já era parturiente, uma vez que já se encontrava em fase ativa de trabalho de parto!

Esta utente/cliente não tinha sido vigiada por nós, mas como em Lisboa mais nenhuma maternidade, privada ou pública, aceitava situações de suspeita ou confirmação de positividade de covid 19 até então, a utente foi referenciada para a MAC, onde foi observada no espaço de Urgência Covid-19, e de seguida encaminhada para o espaço alocado à vigilância de trabalho de parto, por se encontrar em fase ativa.

Previamente equipamo-nos, eu, a enfermeira chefe de equipa e uma obstetra.

Naquele momento, todo o receio que eu pudesse ter de me contaminar com covid-19 desaparecera quando vi aquela senhora entrar, ao observar a sua linguagem corporal, com contrações ritmadas, regulares e uma respiração controlada, apesar da sua ansiedade, que se fazia sentir; pois ao se ter confirmado que se encontrava em trabalho de parto, estávamos mais do que certos de que aquela senhora ia ficar ao nosso cuidado e sob a nossa responsabilidade!

Abriram-se circuitos externos, para transitarmos para o espaço físico alocado aos cuidados inerentes às senhoras com suspeita ou confirmação de covid 19 - Unidade de Internamento Covid-19.

Eu, assim como a restante equipa, estávamos devidamente equipados, e agora era só adequar tudo o que é a nossa prática assistencial normal nas conduções de trabalho de parto e parto à senhora em causa, com a nossa proteção individual de alto risco bem vestida e adaptada.

Ao longo do percurso foi sendo explicado a esta utente o que iria acontecer, em termos de vigilância do seu trabalho de parto, pelo que, quando chegámos, coloquei uma música relaxante, a seu gosto, realizei o acolhimento, efetivei monitorização cardiotocográfica externa, canalizei acesso venoso periférico para colheita de sangue para análises e para ficar com um acesso venoso periférico permeável: "via de autoestrada venosa" de excelência. - promoção de segurança do utente.

Realizei o primeiro teste covid-19: a primeira colheita de exsudado oro e nasofaríngeo para pesquisa de SARS-CoV-2 e aguardávamos o tão temido mas desejado resultado, o qual queríamos que fosse negativo!

Entretanto, as contrações dolorosas estavam mais próximas, o trabalho de parto avançava e até se realizar analgesia locorregional houve oportunidade de promoção de alívio da dor das contrações das mais variadas formas, desde a contextualização e sedimentação científica do que se passava num trabalho de parto à promoção de liberdade de movimentos, adoção de posições antiálgicas, aplicação de sacos de soros quentes na região dorsal e promoção de contacto telefónico com o seu esposo sempre que solicitado.

E, fosse qual fosse o resultado daquele teste, ainda antes de saber qual o resultado decidi que, mesmo que o bebé nascesse depois do meu turno, iria solicitar aos colegas que me rendessem, que me permitissem ficar até esse momento, por tudo o que se vivera de forma tão atípica inaugural e inusitada até então, o que fora aceite e efetivado!

O ter vivido este momento marcante no contexto do início de vida desta família, neste contexto, ainda pandémico, passado já um ano, foi para mim bastante gratificante e construtivo, uma vez que, num cenário de efetiva catástrofe, como vivemos, com tantas dúvidas que existiam ainda, e com tudo o que pudesse estar a acontecer fora da área covid, de uma coisa eu tinha a certeza: aquela condução de trabalho de parto decorria com tranquilidade, serenidade, transparência, Parceria e HUMANIZAÇÃO.

E isso foi edificante!

Felizmente, esta utente foi só suspeita, mas poderia ter sido positiva para SARS-CoV-2....

O que ajudou a tranquilizar-me perante esta nova condição pandémica?

A racionalização do que se estava a passar, o conhecimento do bom trabalho existente, tanto em termos de planeamento como de realização, em termos de mobilização de equipamentos adequados e o recordar do que já tivera vivido na altura da epidemia da gripe das aves; por outro lado, ter o privilégio de estar em contacto permanente com alguns peritos de infecciologia que estão no terreno, e, por outro lado, ter a certeza de que tinha excelentes condições físicas apropriadas à pratica assistencial; estava bem fardada; que iria ter ajuda para retirar o EPI que tinha vestido e que, se fosse necessário algo para recuperar a minha saúde, as minhas diligências também já tinham sido feitas por mim, a que, de direito, e o facto de ter sentido permanentemente o apoio incondicional da equipa multidisciplinar da MAC nessa noite, onde houve sempre a presença física permanente também de um obstetra, da senhora AO alocada, que foi irrepreensível e muito prestável, da chefe de equipa de enfermagem, num espaço físico estratégico para intervir se fosse necessário!

Da minha experiência profissional sei que, por muito adversa que seja a realidade, se formos rigorosos no cumprimento de guidlines face ao pior das catástrofes, e se a equipa multidisciplinar estiver em sinergia, os ganhos serão garantidos, e a humanização do e no cuida, sempre possível!

Grata a todos por esta vivência!

Melhorar é sempre possível!

Enfermeira obstetra.

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