Crise diplomática entre Rabat e Madrid vai para além de "um homem"
A "grave crise" entre Marrocos e Espanha não vai terminar com a audiência em tribunal, nesta terça-feira, do líder da Frente Polisário, Brahim Ghali. O conflito "não está limitado ao assunto de um homem", disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino, deixando claro que o problema "não começa com a sua chegada nem terminará com a sua partida" de Espanha, onde entrou secretamente para receber tratamento médico. Em causa está "uma questão de confiança e de respeito mútuo" que já não existem, com Rabat a dizer que Madrid tem de "clarificar sem ambiguidades as suas escolhas, decisões e posições" em relação ao Sara Ocidental.
O território que tem o triplo do tamanho de Portugal e é praticamente só deserto foi colónia espanhola até 1975. Depois, veio a ocupação marroquina, com a Frente Polisário, que tinha nascido para lutar inicialmente contra a presença espanhola, a lançar uma guerra de guerrilha em busca da independência. O cessar-fogo foi assinado em 1991, sob os auspícios das Nações Unidas, com Marrocos a assumir o controlo de cerca de 80% da região, com a promessa de um referendo que nunca se realizou.
No ano passado, no final da presidência de Donald Trump, os EUA reconheceram a soberania marroquina sobre o Sara Ocidental, em troca da normalização das relações de Marrocos com Israel. Rabat começou então a pressionar a União Europeia, nomeadamente Espanha, para que fizesse o mesmo, o que não chegou a acontecer. Entretanto, Ghali, de 71 anos, que desde 2016 é líder da Frente Polisário e presidente da autoproclamada República Árabe Sarauí Democrática (que é reconhecida por 40 países e tem o apoio da Argélia), precisou de ajuda médica e foi transferido para Espanha.
Considerado um "criminoso de guerra" por Marrocos, Ghali foi o detonador final para a crise. Há duas semanas, Rabat fechou os olhos e deixou que quase dez mil imigrantes cruzassem ilegalmente a fronteira com o enclave espanhol de Ceuta no norte de África. Madrid acusou Marrocos de "chantagem". Agora, Rabat deixa claro que o caso "revelou a conivência" dos espanhóis "com os adversários do reino para minar a integridade territorial" assim como "as atitudes hostis e as estratégias prejudiciais de Espanha em relação ao Sara".
Ghali chegou a Espanha num avião médico do governo argelino a 18 de abril, com um passaporte diplomático, tendo sido internado no hospital de Logroño, na região de La Rioja, com uma identificação falsa. Alegadamente por "motivos de segurança", tendo o governo espanhol autorizado a sua entrada por "razões humanitárias". Quando a sua presença no país foi revelada, a Audiência Nacional reabriu os casos que tem pendentes.
O líder da Frente Polisário vai ser ouvido nesta terça-feira por videoconferência desde o hospital, onde ainda se encontra a recuperar alegadamente de covid-19, mas já não nos cuidados intensivos. Há dois processos abertos contra Ghali. Um deles diz respeito a acusações de tortura no campo de refugiados sarauí de Tindoug, na Argélia, feita por um dissidente, Fadel Breika, que também tem nacionalidade espanhola. O segundo processo prende-se com acusações de genocídio, homicídio, terrorismo, tortura e desaparecimentos feitas pela Associação Sarauí de Defesa dos Direitos Humanos, que tem sede em Espanha.
susana.f.salvador@dn.pt