Créditos ruinosos da CGD nas mãos do Ministério Público
Ninguém sai ileso. As primeiras conclusões da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos (CGD) são arrasadoras, não só para os administradores do banco público como também para o governo e para o Banco de Portugal.
Entre 2000 e 2015, "a CGD não foi gerida de forma sã e prudente", aponta o projeto do relatório final da comissão, redigido pelo deputado do CDS João Almeida. Caberá agora ao Ministério Público apurar se no âmbito da concessão dos créditos ruinosos que resultaram em perdas de muitos milhões de euros para a CGD foram cometidos crimes e por quem.
"Os inquéritos parlamentares não julgam, muito menos condenam aqueles a quem sejam atribuídas responsabilidades pelos factos. A matéria apurada fica à disposição do Ministério Público para que, respeitando o princípio da separação de poderes, possa ser utilizada em procedimento criminal", lê-se no documento assinado pelo deputado do CDS.
O relatório de João Almeida é particularmente crítico da gestão de Carlos Santos Ferreira, que liderou o banco público entre 2005 e 2008. "Pelo que foi apurado, a maioria das perdas teve origem nos anos do mandato da administração liderada por Santos Ferreira; o vice presidente Maldonado Gonelha, os administradores Armando Vara e Francisco Bandeira tiveram (...) intervenção direta nos créditos mais problemáticos", lê-se no documento.
Foi o caso do investimento no projeto Artlant e o financiamento à La Seda, que gerou perdas superiores a 200 milhões. A comissão concluiu que este crédito "revelou-se desastroso" e foi acelerado por "vontade política".
No entanto, Maldonado Gonelha não chegou a ser ouvido presencialmente na comissão, tendo sido apenas inquirido por escrito. João Almeida lamentou a ausência, sublinhando a "convicção" de que "a possibilidade de realização de audição presencial (...) teria constituído vantagem para os trabalhos da comissão".
Debaixo do fogo do relator está também a atuação do Banco de Portugal (BdP) enquanto supervisor. A instituição foi liderada por Vítor Constâncio entre 2000 e 2015 e posteriormente por Carlos Costa.
Segundo o relatório, o BdP exerceu o seu dever de supervisão "de forma burocrática", tendo-se preocupado apenas com questões como os rácios de solvabilidade ou os níveis de liquidez "e não percebendo o risco sistémico de algumas operações".
O relator acusa ainda o BdP de ter atuado com "dualidade de critérios no tratamento de casos semelhantes". No financiamento do empreendimento de Vale do Lobo, por exemplo, foram exigidos "detalhes da operação". Já na aquisição da participação no BCP o supervisor "não exerceu o mesmo zelo".
O relatório vai mais longe nas farpas, acusando o BdP de não acompanhar os problemas quando estes eram detetados ou de confiar demasiado nas instituições, "colocando assim em causa a utilidade da sua supervisão".
Foram ainda as falhas do BdP, conclui o relator, que permitiram o financiamento de 350 milhões de euros à Fundação Joe Berardo. O supervisor "deveria ter realizado uma análise real da instituição em vez de aceitar informação de fraca qualidade dos seus serviços".
Ainda no caso Berardo, "ficou esclarecido" na comissão que "foi o cliente a procurar a CGD e não o contrário". Na sua ida ao Parlamento, em maio, Joe Berardo afirmou aos deputados que "foi a Caixa Geral que propôs o negócio" da compra de ações do BCP.
No capítulo das críticas é ainda visado o Ministério das Finanças, que terá sido alertado sobre as irregularidades, "não existindo evidência de diligências efetuadas no sentido de as colmatar".
Durante 15 anos, a CGD "colocou-se várias vezes numa situação em que ficou refém de si própria", conclui-se. João Almeida destaca a "frustração pela memória seletiva e intermitente" de algumas das figuras chamadas a depor ao longo dos últimos meses.
O relatório está a ser analisado pelos partidos. A versão final será discutida e votada amanhã para, na sexta-feira, ser submetida a plenário.
Das perto de quatro dezenas de audições aos créditos da Caixa no inquérito iniciado em fevereiro, e que se conclui nesta quarta-feira com a aprovação do relatório final, uma boa parte fixou-se perto de 400 milhões de euros obtidos pelo empresário via Metalgest e Fundação José Berardo, para financiar o reforço da posição do empresário no BCP. Os negócios de Manuel Fino, de Vale do Lobo e o financiamento à La Seda, em Sines, também concentraram a atenção.
No início de maio, o empresário José Berardo assegurava aos deputados estar "pessoalmente" livre de dívidas e sem bens pessoais executáveis para a recuperação daquelas que foram das maiores perdas da CGD nos créditos concedidos pelo banco até 2015. Foi porventura o momento mais marcante deste segundo inquérito parlamentar às operações da CGD.
A administração da CGD liderada por Carlos Santos Ferreira e a atuação do supervisor merecem os principais reparos no final do inquérito. Segundo este, o Banco de Portugal deu tratamento "diferenciado" a Joe Berardo. Vítor Constâncio, o governador da altura, esteve no Parlamento em meados de junho a defender que os serviços do BdP atuaram em acerto com a informação de que dispunham para não obstarem à compra das ações do BCP. Não o fazer, apurada a "licitude dos fundos" e verificada a idoneidade de Berardo, "seria ir contra a lei", argumentou Constâncio.
Neste mesmo inquérito, Filipe Pinhal, antigo administrador e presidente do BCP, acusou porém Vítor Constâncio de ter estado por detrás de uma "teia urdida" para a tomada do BCP em 2007. Afirmou inclusivamente que o então governador teria influenciado a escolha de Carlos Santos Ferreira para a liderança do BCP, depois de este ter liderado a CGD de 2005 a 2008.
Santos Ferreira, por seu turno, foi à comissão defender a decisão de financiamento do banco público. Para o banqueiro, a tese de assalto ao BCP era "mito urbano". A "teoria de haver financiamentos da CGD e depois alguns membros da administração da CGD terem ido para o BCP, a chamada teoria do assalto ao BCP é uma frase fácil que tem como objetivo ocultar o que se passou", defendeu.
Quanto aos créditos devidos pela Investifino, na segunda maior perda da Caixa, ouviu-se no Parlamento José Manuel Fino, filho de Manuel Fino, dizer que o banco não terá como recuperar 260 milhões de euros emprestados para compra de ações do BCP e da Cimpor. "Não existe mais património", afirmou.
O financiamento ao grupo Artland/La Seda para uma fábrica petroquímica em Sines foi outro dos créditos ruinosos. Manuel Matos Gil, antigo administrador, culpou no Parlamento a gestão da Caixa pela não recuperação dos valores. O banco terá sofrido perdas superiores a 200 milhões.
Já no financiamento de Vale do Lobo, Armando Vara, ex-administrador da CGD, defendeu que a Caixa conseguiu recuperar o dinheiro emprestado.
O Banco de Portugal deverá publicar, entre hoje e amanhã, os dados agregados sobre as grandes dívidas aos bancos que foram alvo de ajudas públicas de 2007 até ao ano passado. Em fevereiro, o banco central ficou obrigado por lei a tornar públicos os créditos, embora sem identificação dos devedores.
A publicação acontece perto de dois meses após a entrega no Parlamento de um primeiro relatório extraordinário, incluindo dados sujeitos a sigilo bancário, sobre as posições dos grandes devedores em oito instituições ajudadas, que consumiram ao todo 23,8 mil milhões de euros. São a CGD, BCP, BPI, BES, Novo Banco, Banif, BPP e BPN.
A lei prevê a divulgação de valores de créditos em incumprimento acima de cinco milhões de euros, perdas resultantes, capital recuperado e medidas adotadas pelos bancos para recuperar montantes em falta.
------------------------------------------------------------------
Reflexão
A comissão apela a uma "reflexão profunda sobre o papel da CGD enquanto banco público". O relator alerta que não basta proclamar "princípios gerais".
Estado presente
Enquanto acionista, o Estado deve atuar no banco público de forma "presente e transparente", não bastando "nomear a administração e aferir resultados quantitativos".
Tirar lições
O relator aconselha o BdP a olhar para a sua atuação enquanto supervisor da banca durante a crise financeira, o que permitirá "assumir os erros e as lições aprendidas".
Cultura interna
O dever de supervisão do BdP deve estender-se à "cultura, comportamento e dinâmicas internas", para melhorar a reputação dos bancos e a confiança no sistema financeiro.
Reforma é prioridade
A reforma da supervisão financeira deve ser uma "prioridade". No arranque da próxima legislatura deverá ser aprovada.
Recuperar perdas
A CGD deve apurar as responsabilidades dos créditos ruinosos e tentar ser ressarcida das perdas.
Não repetir erros
O banco público deve adotar todas as medidas propostas para que as "situações que geraram tão avultados prejuízos" não se repitam.