Craque da academia do Shakhtar escondido num bunker com a mulher grávida

Drama é contado pelo técnico português Fernando Valente, que o treinou na Ucrânia: "Há pouco tempo enviou-me uma foto deles enfiados num bunker e tristes. Sempre que revejo, vêm-me as lágrimas aos olhos."
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A história é contada pelo treinador português Fernando Valente, que lamenta que um dos maiores talentos da academia do Shakhtar Donetsk e seu antigo futebolista, de apenas 20 anos, tenha de estar escondido num bunker para fugir à guerra na Ucrânia.

"O Sudakov é um miúdo de 20 anos com um potencial enorme, até para jogar num FC Barcelona ou Manchester City. Foi o maior talento que treinei e é dos que mantenho ligações mais fortes. No telemóvel guardo uma foto anterior ao conflito dele e da namorada, que está grávida, felizes da vida, e há pouco tempo enviou-me outra deles enfiados num 'bunker' e tristes. Sempre que revejo, vêm-me as lágrimas aos olhos", contou Fernando Valente, à Lusa.

O técnico paredense adiantou que o seu antigo pupilo já deixou Kiev e rumou a Lviv, a oeste da capital, sendo um dos três elementos que treinou na academia e que hoje são titulares na equipa principal do Shakhtar Donetsk. Os restantes são Bondarenko e Mudryk, autor do golo que colocou a equipa ucraniana na fase de grupos desta edição da Liga dos Campeões.

"Felizmente, outros 15 jogadores que treinei no Shakhtar e agora representam o Mariupol estão fora do país, uma vez que realizavam a pré-temporada na Turquia, após a pausa de inverno, quando a guerra começou", revelou, satisfeito por ter contribuído em dois anos para a promoção de 21 jogadores à I Liga ucraniana.

Dos primeiros tempos na Ucrânia recordou o convite de José Boto, na altura responsável pelo recrutamento, com o objetivo de aproximar o jogo dos sub-21 ao da equipa principal do Shakhtar, que tinha 14 brasileiros.

"Ao fim de algum tempo, esse estilo de jogo mais curto e ligado, com um lado estético mais acentuado, apareceu e o clube promoveu-me a diretor da academia para os escalões mais velhos", recordou, orgulhoso, Fernando Valente.

Na academia do Shakhtar, já em Kiev, Valente deixou o banco e passou a coordenar os sub-17, 19 e 21 (outro português, Edgar Cardoso, tinha a seu cargo os escalões abaixo dos sub-16), tendo ainda visto o seu contrato prolongado por mais duas temporadas, num trajeto interrompido, no ano passado, após o fim do campeonato de sub-21, por decisão da Federação local.

Foi a segunda experiência fora do país, depois de, em 2017, ter treinado os sub-19 do Shandong Luneng, na China, em mais "uma experiência fantástica".

"Foi um projeto muito desafiante, sobretudo pelas diferenças culturais, de alimentação e na comunicação, mas as condições eram únicas, numa estrutura com 35 campos relvados, dois hotéis, uma escola e um hospital. Os chineses, é curioso, acham que não têm talento e investem mais no trabalho duro, mas a verdade é que há talento em todo o lado", concluiu.

Fernando Valente confessou sentir ainda hoje "arrepios" pela possibilidade de ter sido apanhado na guerra, após convite do Mariupol, admitindo "disponibilidade" para regressar um dia à Ucrânia e continuar a promover o futebol positivo.

"Houve o convite do Mariupol, mas nunca chegou a ser tomada a decisão, nem na fase de interrupção da prova, que acontece de 15 de dezembro até à última semana de fevereiro, sendo essa uma das coisas que ainda hoje mais mexe comigo", recordou Fernando Valente, em declarações à agência Lusa.

O convite para o Mariupol, clube da cidade portuária com o mesmo nome na região de Donetsk e uma das primeiras a ser atacadas pela Rússia, surgiu após o fim do campeonato de sub-21, decidido pela Federação da Ucrânia, e ia permitir o reencontro do técnico com 15 dos seus antigos jogadores, num clube com quem o Shakhtar tem um protocolo de colaboração.

"Não tinha que ser e, visto agora de fora, ainda bem que não aconteceu", sublinhou, tendo presente que a oficialização desse convite o colocaria por estes dias em Mariupol.

O alívio do técnico luso esfumou-se num fósforo, acendendo-se, de seguida, a inquietante recordação do que chegou a dizer a um dos responsáveis do Shakhtar.

"Ao rebobinar as coisas na minha cabeça, lembro-me de chegar a comentar com o diretor-geral do Shakhtar, o que até parece irónico à luz dos recentes acontecimentos, que tinha lá tudo para ser feliz e que, se pudesse juntar a família, até gostava de morrer onde me sentia feliz, na Ucrânia", contou, pensativo.

A Rússia lançou em 24 de fevereiro uma ofensiva militar na Ucrânia. A invasão russa foi condenada pela generalidade da comunidade internacional que respondeu com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas a Moscovo.

Uma coisa é certa, "se as coisas mudarem, e estiverem reunidas condições", Fernando Valente diz não ter problemas em regressar à Ucrânia, onde esteve e foi feliz, entre 2019 e 2021. Começou por treinar os sub-21, sendo de seguida promovido a diretor da academia de futebol do Shakhtar nos escalões mais velhos (sub-17, 19 e 21).

"Uma das coisas que me fizeram apaixonar pelo Shakhtar foi constatar que o presidente do clube partilha este lado mais estético do jogo, acreditando, como eu, que é possível vencer a jogar bem", argumentou.

Enquanto isso não acontece, Fernando Valente está disponível a propostas, confiante na utilidade da sua experiência, que disse assentar em "processos simples que valorizam o jogo e os jogadores".

"O futebol é para jogar e não para correr, correndo-se para jogar. Só espero que a idade não seja um impeditivo, porque as ideias são boas ou más, mas não têm idade", concluiu.

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