Costa levanta segredo, mas secretas escondem informação

Está confirmada a existência do Manual de Procedimentos do SIS, sobre o qual há suspeitas de referências a práticas ilegais. Conselho de Fiscalização e PGR estão em silêncio
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Um inédito levantamento do segredo de Estado, a pedido da defesa dos ex-espiões que estão a ser julgados no "caso das secretas", foi autorizado pelo primeiro-ministro, com o objetivo de apurar a verdade em tribunal. O levantamento das informações classificadas, no entanto, foi apenas parcial.

A decisão de António Costa foi baseada num parecer do próprio Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) - assinado não pelo secretário-geral, Júlio Pereira, mas pela sua chefe de gabinete, Paula Morais - que deixou de fora matérias pedidas pela juíza presidente, Rosa Brandão, e que podiam ser comprometedoras para os responsáveis das secretas. É o caso do "glossário" do manual, no qual estão referidas "escutas", uma prática proibida aos espiões, cuja existência foi denunciada pelos principais arguidos, Jorge Silva Carvalho, ex-diretor do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) e João Luís, ex-diretor de Operações. Acesso ilegítimo a dados pessoais, abuso de poder, violação de segredo de Estado e corrupção ativa e passiva para ato ilícito são os crimes em causa neste processo.

Mas este levantamento parcial tem uma consequência imediata: o reconhecimento oficial, pela primeira vez, da existência do referido Manual de Procedimentos, através do qual são definidos a doutrina e os procedimentos da sua atividade. Foi referido pela defesa de Silva Carvalho e de João Luís, para fundamentar que alguns dos crimes de que são acusados - como o acesso aos dados das comunicações - são comuns na atividade dos espiões, bem como outras ações operacionais, como as escutas, proibidas por lei.

Fontes nas operadoras

Na sua audição em tribunal os dirigentes das secretas invocaram o segredo de Estado para não confirmar ou desmentir. O próprio Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informação (CFSIRP) teve idêntica posição. Perante a presente confirmação oficial sobre a existência do manual, o DN questionou as duas entidades que têm competência para investigar e esclarecer as suspeitas, o CFSIRP, presidido pelo jurista Paulo Mota Pinto, ex-deputado do PSD, e a Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o que pretendiam fazer, mas não obteve resposta.

Filipe Neto Brandão, deputado socialista membro do CFSIRP que acompanha também estas matérias no Parlamento, não quis, igualmente comentar. "Não me pronuncio sobre uma matéria que está sob apreciação de um tribunal. Para mais incidindo sobre um período anterior ao meu início de funções", limitou-se a responder. Recorde-se que quando foi noticiada, pela primeira vez, a existência deste manual e as respetivas referências a práticas ilegais, o PS votou ao lado do PSD e do CDS para impedir uma audição do secretário-geral Júlio Pereira, que tinha sido requerida pelo PCP.

Mas para o ex-presidente do CFSIRP, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, a simples confirmação da existência do manual é motivo de preocupação. "Pode ser uma "bomba"", assinala. "Perante indícios da prática de crimes, o CFSIRP pode pedir a abertura de um inquérito, no âmbito das competências que lhe estão atribuídas pela lei-quadro do SIRP", sugere o professor de Direito que até elogia a decisão de Costa. "Acho que fez bem num Estado de direito", salienta. Questionado sobre se é possível que o CFSIRP nunca tenha tido acesso a este manual ou se, tendo tido, e constando nele as referidas práticas ilegais, por que razão nada fez, Bacelar Gouveia salienta: "Ou fiscalizou mal ou ocultou essa ilegalidade."

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Uma das matérias que podem ser esclarecidas com o levantamento parcial é, ainda assim, o recrutamento de toupeiras nas operadoras de telecomunicações. Foi uma destas "toupeiras" na Optimus que cedeu os dados das comunicações do jornalista Nuno Simas a Silva Carvalho e a defesa quer demonstrar que este tipo de relacionamento com as operadoras era vulgar.

Além do índice, o SIRP remete também ao tribunal o capítulo do manual que diz respeito ao "Recrutamento e gestão das fontes humanas" dos serviços. Entre as entidades alvo deste recrutamento estão, entre outras (como as Finanças e bancos), as "operadoras de telecomunicações móveis".

No seu depoimento em tribunal, um ex-membro do CFSIRP, Pedro Barbosa, professor de História na Universidade de Lisboa, declarou que, durante a investigação que os fiscais fizeram em 2011 ao caso de Nuno Simas, ouviu espiões a contar episódios de acesso a faturações detalhadas de telemóveis. Porém, relatou o professor, os seus interlocutores foram renitentes a apresentar provas.

O PCP já tentou ouvir de novo Júlio Pereira no Parlamento, depois destas denúncias em tribunal, mas sem sucesso. A juíza Rosa Brandão concedeu dez dias aos advogados de defesa para se pronunciarem sobre a resposta do gabinete do primeiro-ministro e admitiu que, durante o julgamento, possa haver ainda sessões dedicadas à produção de prova, antes da fase das alegações finais.

Carta de demissão revela conflito

A carta de demissão que Jorge Silva Carvalho enviou ao secretário-geral do SIRP, Júlio Pereira, será anterior às conversas com a Ongoing para a sua contratação - cujo processo é uma das matérias alvo da acusação de corrupção contra si. A data da missiva, sobre a qual foi levantado o segredo de Estado, é de 8 de novembro e para a defesa o seu conteúdo vai indicar os reais "motivos" da saída de Silva Carvalho das secretas.

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Segundo o documento, o ex-dirigente do SIED justifica o seu pedido de demissão por discordar dos cortes orçamentais e da estratégia seguida por Júlio Pereira para os serviços, sentindo-se desautorizado e descredibilizado.

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