Copperfield: um filme levado da breca (e outras adaptações de Dickens) 

Chega nesta quinta-feira às salas <em>A Vida Extraordinária de Copperfield,</em> uma nova adaptação do romance de Charles Dickens, por Armando Iannucci, sem vénias clássicas, mas todo o respeito pela imaginação contida na escrita do autor - o mais revisitado pelo cinema.
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Um ator indiano na pele de David Copperfield, a personagem autobiográfica de Charles Dickens? Sim, isso mesmo. A bravura da nova adaptação daquele que foi o romance predileto do escritor inglês começa nesse pequeno grande detalhe de casting - Dev Patel -, que de resto não é caso único num elenco mirabolante. Digamos que Armando Iannucci, realizador do satírico A Morte de Estaline e da série Veep, não mergulhou num universo literário para lhe fazer reverência mas antes para sacudir o seu imaginário, como quem desarruma uma casinha de bonecas: A Vida Extraordinária de Copperfield é uma festa constante de figuras burlescas a convidar o espectador para uma volta no carrossel da vida.

E a vida aqui levada ao grande ecrã, tanto quanto dizem os especialistas da obra de Dickens, é a do próprio autor, mais fantasia menos fantasia. É por aí que segue Iannucci, reunindo um notável conjunto de atores, de Tilda Swinton a Hugh Laurie, passando por Ben Whishaw (em atípica expressão malévola), que reinventa a diversão contida na história de um menino órfão entregue à aventura caótica e aos infortúnios de uma jornada de autodescoberta, até atingir o estatuto de escritor. Com um pé na era vitoriana e o outro num excitante espírito moderno, bem temperado de comédia, o realizador escocês elabora uma verdadeira celebração da criatividade sem prestar contas aos "polícias do rigor". Um filme garrido, leve - sem ser ligeiro, no sentido depreciativo -, que nos faz lembrar porque é que Charles Dickens é o mais amado dos autores no que toca a adaptações cinematográficas.

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Nos 150 anos da sua morte, eis quatro obras, para além de David Copperfield, que têm feito as delícias dos realizadores ao longo dos anos:

De entre os clássicos, nenhum outro escritor retratou melhor as odisseias dos órfãos da Inglaterra vitoriana. Oliver Twist é porventura a mais emblemática dessas narrativas, seguindo o trajeto do pequeno Oliver desde o orfanato às ruas, onde o seu destino se cruza com um grupo de miúdos carteiristas ao serviço de um velho judeu, Fagin, que lhes ensina a "arte" de roubar... A primeira grande adaptação ao cinema foi feita por David Lean - As Aventuras de Oliver Twist (1948) -, com uma feição marcadamente expressionista e um dissabor de época: Fagin, interpretado por Alec Guinness, surgiu na tela com um nariz tão exagerado que alguns tomaram a caracterização como antissemita. O filme foi banido em Israel e não estreou nos Estados Unidos até 1951, três anos decorridos sobre o lançamento.

Já a versão exuberante de Carol Reed, apenas intitulada Oliver! (1968), partindo do musical de êxito de Lionel Bart, conseguiria a proeza de ganhar cinco Óscares, incluindo o de Melhor Filme e realizador, para além de outro honorário para a coreógrafa Onna White.

Por sua vez, em 2005 Roman Polanski assinou um vagamente autobiográfico Oliver Twist, munido com o brilhante desempenho de Ben Kingsley no papel de Fagin. É um filme que irrompe na obra do realizador como uma evocação da sua infância, enquanto menino judeu que fugiu dos horrores do gueto de Cracóvia, tal como Oliver fugiu do orfanato.

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De novo, David Lean é a associação imediata ao título de Dickens. Não só porque Grandes Esperanças se tratou, de facto, da primeira adaptação que realizou deste universo literário - em 1946, antes de Oliver Twist -, mas também porque foi um sucesso, ainda na ressaca da Segunda Guerra Mundial, tendo vencido dois Óscares, de Melhor Fotografia e direção artística. Escusado será dizer que as qualidades da versão de Lean vão muito além da consagração estética.

Esta história do órfão Pip, que se torna herdeiro de uma grande fortuna, sem saber quem é o seu benfeitor, conheceu em 1998 uma aparência bem diferente pela apropriação moderna de Alfonso Cuarón, com o par Gwyneth Paltrow e Ethan Hawke. Aqui o foco é romântico e o protagonista, um pintor, parte para Nova Iorque onde encontra a fria e deslumbrante Estella...

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É, sem dúvida, a mais adaptada das obras de Charles Dickens, com múltiplas variações do elemento narrativo dos três fantasmas que visitam um homem avarento na noite de Natal. Contam-se entre as versões mais populares a comédia SOS Fantasmas (1988), de Richard Donner, com Bill Murray, O Conto de Natal dos Marretas (1992), com Michael Caine, e Um Conto de Natal do Mickey (1983), com o tio Patinhas no papel do avarento senhor Scrooge.

A animação é, aliás, o registo cinematográfico por excelência deste conto. Em 1971, a curta-metragem A Christmas Carol, de Richard Williams, ganhou o Óscar de Melhor Curta-metragem de Animação, e em 2009, Robert Zemeckis assinou a produção Disney que se tornou obrigatória para todos os natais, com Jim Carrey debaixo de uma maquilhagem digital que então experimentava as maravilhas do motion capture.

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O fascínio da literatura de Dickens também se refletiu no cinema português. João Botelho realizou e escreveu a adaptação de Tempos Difíceis em 1988. Neste caso, não será apenas uma transposição literária para a língua portuguesa, mas sobretudo um jogo de espelhos com a realidade do país na altura. Se é verdade que o autor britânico descreveu criticamente a dureza dos tempos da industrialização em Inglaterra, Botelho pegou nessa permanente "atualidade" e mostrou a luta de classes que havia num Portugal cavaquista. Os ricos e os pobres, os exploradores e os explorados, tema tão dickensiano.

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