Contra o desastre
A ordem mundial no modelo da utopia da ONU continua, pela gravidade de ruturas se multiplicarem, tendo frequentemente como dinamização a revolta que o programa da descolonização não evitou do chamado terceiro mundo contra a pluralidade de soberanias que vieram a convergir na tarefa de ocidentalizar o mundo. A gravidade dessas fraturas faz sempre lembrar as palavras de Anatole France quando, pelos indícios do seu tempo, advertiu no seu Sur la Pierre Blanche contra o que chamou "La folie colonial".
Nos fins do pouco tranquilizante ano de 2019 voltam à lista dos confrontos os "mitos raciais" que foi missão, sobretudo da UNESCO, na sua ação valiosa, extinguir. Ninguém observou que na arena mundial em que se transformou o globo, enfraquecendo a utopia da ONU, não conseguiu impor-se a conclusão de que a mais grave das causas desse aspeto do mundo de fronteiras é não incluir na memória o facto da mestiçagem, que facilmente afeta o mais arreigado mito da etnia pura. Infelizmente as fraturas são agravadas não apenas pelo primário motivo da cor da pele, pela história mundial da lenta implantação da "justiça natural" que vai tomando forma nas declarações de direitos, mas ainda pela associação das incompatibilidades decorrentes da diferença de religiões.
O conflito entre deveres de humanidade e segurança - que complica as respostas dos países europeus ao movimento das migrações, que será inevitavelmente agravado pela degradação dos espaços do globo onde não será possível repor uma vida sustentável dos possíveis retornados - vai sendo acompanhado do conflito interno de países onde, não obstante a comunhão na fé, as diferenças das leituras se traduz em fraturas que acrescem às tragédias suscitadas pela rutura da paz. Não passou muito tempo desde que o presidente dos EUA, a dez minutos do horário estabelecido, impediu o ataque americano organizado contra o Irão. Este, talvez lembrando ao ameaçador presidente que estava a lidar com um Estado herdeiro de uma cultura milenária, respondeu que não queria a guerra, mas não a temia. Na data não terá previsto que teria de assumir brevemente uma grave repressão interna para manter o regime da República nascido da Revolução de 1979. Desta vez a questão não resulta de invocadas diferenças de culto, mas do aumento do preço do petróleo em 50%.
Acredita-se que já foram mortas mais de 150 pessoas, resultado de as forças de segurança usarem balas reais, com a mesma decisão com que não hesitou em abater um drone americano que lhe invadiu o espaço. No Iraque, que parece esquecer o desastre que foi a intervenção americana, agrava-se a intervenção pelo facto de o dirigente xiita Sistani se ter visto obrigado a sustentar, pela sua influente palavra, que o governo tem de respeitar "a santidade de sangue iraquiano".
Tudo isto contribui para não deixar de valorizar dois factos que fortalecem a esperança. Em primeiro lugar, a viagem corajosa do Papa Francisco pelo Oriente, onde a dimensão católica é minoritária, mas onde a sua presença e pregação dos direitos humanos faz lembrar A Missa sobre o Mundo do tão persistente Chardin, que em vida não viu as suas obras teológicas merecedoras de autorização, que as Éditions du Seuil persistiram em publicar, uma situação que começou a ser contrariada pela muito citada carta do cardeal Casaroli, secretário de Estado do Vaticano. Mas também é de registar a sessão em que, na Fundação Gulbenkian, em 11 de novembro último, foi apresentada a Conferência do Conselho Global para Tolerância e Paz, pelo seu fundador e presidente Ahmed Bin Mohammed Al Jarwan, uma iniciativa já acolhida pela ONU e que vem fortalecer o movimento de encontro das diversidades culturais e religiosas na luta por tornar realidade o conceito de "mundo único".
As guerras entre Estados não resultam sempre de políticas territoriais que foram frequentes, mas radicam eventualmente, como acontece com as guerras de religião, em duradoiras contradições culturais. O mapa dos conflitos em curso ou possíveis, o risco frequente de se alargarem a vastas regiões, as capacidades militares que se multiplicaram, o policentrismo atómico, tudo apela para eliminar o desvelo pelo alegado princípio da beligerância que inspirou Nietzsche, porque a generalizada consciência do risco faz apelo a outros valores. Os que, com novidade, marcam o Conselho Global para Tolerância e Paz.