Nas últimas duas décadas, o país passou de uma realidade em que a toxicodependência era um grave problema de saúde pública e criminal para uma situação em que as consequências do consumo deixaram de estar nas preocupações da sociedade. No ano em que surgiu a Estratégia Nacional de Luta contra a Droga - a lei foi aprovada a 22 de abril de 1999 era primeiro-ministro o atual secretário-geral da ONU António Guterres - foram registadas em Portugal 369 mortes relacionadas com o consumo de droga (na altura não era especificado quantos por overdose), tinham sido até esse ano diagnosticadas com sida 3239 pessoas e a droga mais consumida era a heroína. Estavam em tratamento 27 750 indivíduos..Em 2017, segundo os dados mais recentes divulgados, a droga com maior apreensão foi a canábis, dos 313 óbitos cujas autópsias detetaram o consumo de droga, 38 aconteceram por overdose. Foram notificados 1068 casos de infeção por VIH relacionados com a toxicodependência e 234 casos de sida, 11% associados à toxicodependência. E nas 18 Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência foram instaurados 12 232 processos de contraordenação por consumo..Estas comissões são uma das grandes diferenças entre o panorama de 1999 e o atual. Antes de a Estratégia ser aprovada quem fosse apanhado pela polícia com droga era detido independentemente da quantidade ou pelo menos era referenciado e a substância apreendida. Com a entrada em vigor da legislação as autoridades passaram a deixar de tratar os consumidores como marginais passando a referenciá-los para as comissões em que podem ser obrigados a pagar uma multa ou a entrar num programa de tratamento..Foi a mudança da visão criminalista para o "princípio do humanismo e do pragmatismo", como disse ao DN João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), entidade que organiza nesta terça-feira o colóquio - 20 Anos de ENLCD: Passado, Presente e Futuro, que reunirá, a partir das 14.15 na Fundação Calouste Gulbenkian, vários especialistas do tema. A abertura do evento estará a cargo da ministra da Saúde, Marta Temido, e o encerramento pelo primeiro-ministro, António Costa. Pelo meio, serão analisados os resultados do modelo português, que ainda nesta segunda-feira foi tema no jornal espanhol El País, o futuro e ouvir-se-á a opinião, por vídeo, do líder da Virgin Richard Branson que há alguns anos tem elogiado a opção de Portugal. Tal como o realizador e escritor norte-americano Michael Moore.."Havia um número muito grande de mortes por overdose".João Goulão está ligado à Estratégia Nacional de Luta contra a Droga desde o início. Para o diretor do SICAD a opção portuguesa foi importante pela mudança de paradigma na forma como a questão da toxicodependência foi sendo tratada, mas agora há novos desafios: a dependência dos ecrãs e a provável necessidade de colocar no terreno uma nova estratégia sobre o tema..Quando a Estratégia foi aprovada a situação do país era muito difícil no que diz respeito ao consumo de drogas..A Estratégia Nacional de Luta contra a Droga aprovada em 1999 lançou os instrumentos que permitiram de uma forma mais coerente enfrentar os problemas seríssimos que o país enfrentava. Estávamos no pico da epidemia da heroína, que foi avassaladora. Tivemos um número significativo de mortes por overdose, infeções por VIH, hepatites, tuberculoses, que tiveram consequências dramáticas ao nível da saúde e da criminalidade associada que transformaram os problemas da droga e da toxicodependência na primeira preocupação dos portugueses no final dos anos 90..Foi uma opção no sentido correto?.A Estratégia foi equilibrada. Assentava em vários princípios dos quais os mais importantes serão o do humanismo e o do pragmatismo. Da Estratégia resultou uma série de propostas ao nível da prevenção, tratamento, da adoção de políticas de redução de danos, de reinserção social. Tudo isto tornado mais coerente com a proposta de descriminalização do uso de drogas. Passou-se a considerar que os problemas relacionados com as drogas eram sobretudo da área da saúde e do social mais do que da área criminal..A situação é muito melhor..Já não há aqueles grandes quadros de degradação social. O que tínhamos na altura [1999] era um grande número de consumidores de droga problemáticos, com dependência e por via injetável..Foi o momento-chave para mudar o país nesse particular?.Foi um ponto de viragem. Não foi um ponto de partida, pois já havia muita coisa feita, mas foi um momento de reflexão e orientação, de estabelecimento de orientações claras. Seguiu-se a criação de vários instrumentos que resultavam da estratégia, o edifício legislativo que a enquadra, a coordenação interministerial que permite desenvolver políticas ao nível de todas as áreas de governação para a área da droga. Tudo isto levou a uma evolução globalmente positiva ao ponto de a determinado momento Portugal ser um exemplo na abordagem destes problemas. Hoje a nível internacional somos uma referência incontornável no desenvolvimento de políticas relacionadas com as drogas..Exemplo como?.Temos uma muito menor percentagem de consumidores que podemos considerar como problemáticos. Há utilizadores recreativos mas que vivem em relativo equilíbrio com os seus consumos e que conseguem ter uma vida social, profissional. A percentagem de consumidores problemáticos diminuiu drasticamente, arriscaria que caiu para metade do que era no início deste ciclo. E dentro dos consumidores problemáticos a esmagadora maioria está em ligação com estruturas de tratamento. Isto traduziu-se numa diminuição da incidência de infeções de VIH, um menor número de overdoses ocorrido por ano no contexto europeu, uma diminuição da pequena criminalidade relacionada com drogas que era uma realidade muito presente no nosso país. E, de uma forma geral, os problemas da droga e da toxicodependência, que eram uma das preocupações dos portugueses no final da década de 90, hoje caiu no ranking dessas preocupações, as pessoas já não referem espontaneamente a preocupação com as questões da droga e da toxicodependência. De uma forma geral é evidente que os problemas relacionados com a droga em Portugal não estão resolvidos mas os progressos são, penso eu, entendidos pelos cidadãos.."A crise económica levou a um número significativo de recaídas nos consumidores".Ao longo destes 20 anos nem tudo correu bem....A crise económica e social [período entre 2011 e 2015 quando Portugal esteve sob ajuda externa] afetou-nos a todos e particularmente franjas mais fragilizadas da população consumidora de drogas, o que levou a um recrudescimento de alguns problemas que pareciam ultrapassados. Durante esse período houve um número muito significativo de recaídas, de antigos utilizadores de heroína que com o apoio dos serviços de tratamento ou de redução de danos tinham alcançado um menor sofrimento na sua vida, tinham-se equilibrado. Além disso, o desaparecimento de algumas medidas, como o programa de discriminação positiva para o emprego das pessoas em tratamento e que nessa altura foi extinto, também os atingiu. Em 2012 foi decidido extinguir o Instituto da Droga e da Toxicodependência e passar as suas competências para as administrações regionais de saúde. Portanto, houve aqui vários fatores que introduziram algumas dificuldades no desenvolvimento da Estratégia, mas apesar disso e de uma forma global diria que temos conseguido oferecer apoio à população consumidora de drogas..Quais são os novos desafios? Uma nova estratégia?.Hoje temos [SICAD] um mandato alargado em termos de comportamentos aditivos. Abordamos também as questões ligadas ao consumo massivo de álcool e o comportamento em relação ao jogo e estamos a dar os primeiros passos na abordagem de questões como a dependência de ecrã. E há outras substâncias, o mercado foi inundado por um lote novo de substâncias psicóticas, felizmente que na nossa realidade ainda não têm um impacte muito grande. Em Portugal, boa parte dos problemas continuam a ser com as drogas clássicas..Com a alteração do tipo....É evidente que há fatores que são tendências a que assistimos também a nível internacional. A epidemia da heroína foi datada, hoje em dia assiste-se a outras, nomeadamente nos EUA e no Canadá, que estão relacionadas com os opioides, com medicamentos opioides que são utilizados fora do contexto terapêutico. São uma realidade que por enquanto não tem grande evidência em Portugal. A heroína tem vindo a perder muita da sua importância, mas há ainda uma população muito significativa de utilizadores sobretudo de longo curso, felizmente não há muitos jovens a consumir esta substância. Mas há outros desafios, nomeadamente estimulantes como a cocaína, anfetaminas e o ecstasy que é mais utilizado em contexto social.."Uso social da canábis deve ser alvo de debate sério".Ao longo de 20 anos muitas foram as alterações neste âmbito. Em Portugal discute-se as salas de injeção assistida e a legalização total da canábis. O que pensa destes temas? .As salas de consumo assistido são possíveis em Portugal desde 2001. Estão previstas na lei que regulamenta as respostas no âmbito da redução de danos. O que acontece é que imediatamente a seguir a essa aprovação, quando as salas faziam todo o sentido, não existiram condições políticas para as implementar. Só mais tarde é que houve condições, mas nesse momento o decréscimo do produto injetável era tão sensível, estávamos a obter progressos tão significativos que a opinião dos próprios profissionais do terreno (de primeira linha) foi a de que as salas de consumo vigiado veriam em contraciclo com essa evolução. Contudo e também em consequência da crise de que falávamos, o consumo por via injetável, o reaparecimento de franjas mais desorganizadas de consumidores, veio constituir novamente uma população potencialmente beneficiada pela existência desses espaços, por isso estamos agora num momento em que estão a ser implementados. Já foi criada a primeira unidade em Lisboa de consumo vigiado - uma unidade móvel - e estão em preparação mais duas. E recentemente o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, mostrou a sua abertura para a criação de um espaço desse tipo na cidade..E no que diz respeito à canábis?.É evidente que há movimentos no sentido de um novo paradigma. Até agora temo-nos movimentado dentro de um paradigma proibicionista, mas há países que estão a funcionar como laboratórios sociais num novo paradigma, mais regulador. Penso que não podemos ser autistas e ignorar essa discussão. Bem pelo contrário, vale a pena enveredar por uma discussão franca e tanto quanto possível com base nas evidências científicas que essas experiências vão produzindo. Todos os países estão interessados em minimizar os efeitos negativos das substâncias, nomeadamente da canábis. Só que alguns acreditam que é pela via da regulação, outros continuam a achar que é pela via da proibição embora mitigada pela descriminalização..E qual é a sua opinião?.Acho que é um debate importante a travar - no ano passado tivemos o debate do uso terapêutico, e que está em período de implementação. O uso social também merece uma análise com igual seriedade e tanto quanto possível com base nas evidências que já existem nas experiências em curso, por exemplo no Uruguai, Canadá e em alguns estados dos EUA. O que acontece? Aumentam ou diminuem os problemas relacionados com o consumo, nomeadamente na juventude? O que acontece em termos de saúde mental?.Há passos a dar portanto..Há alguns e que nos remetem para um novo ciclo, para uma nova estratégia. Mas sem rejeitar o que ficou para trás que foi, penso, uma experiência globalmente positiva.