A organização geográfica e a força da tradição levam-nos a começar pelo Minho. Latitude, altitude, frio e pedra dura, as matanças continuam mas o fumeiro já está curado, começam a sair as melhores papas de sarrabulho e até já se arranja lampreia rio Minho acima. Fundamental é que na consoada minhota pontifique o bacalhau cozido e demais assessoria: batata cozida, couve tronchuda curtida pela geada e ovos cozidos. Assim sendo já o mundo pode acabar, mas claro que não se acaba nem as bondades culinárias para o seu desfile. Na mesa põe-se também polvo cozido, apresentado guisado em verde tinto ou na clássica configuração de arroz de polvo, o mesmo que Portugal inteiro ama. No lado doceiro é assunto bem minhoto os mexidos. Em Ponte de Lima fazem-se com pinhões, passas, vinho do Porto, mel e miolo de pão branco. E canela, claro, como quase tudo o que se faz nesta altura. As rabanadas levam mel e há sempre castanhas, nozes e figos para picar e afastar para bem longe o demónio da fome. No fundo é um gesto de gratidão para com a mãe natureza, que nos encheu de presentes tão bons. Em pequenas malgas colocamos mel e açúcar e acrescentamos vinho quente, quase a ferver, o conforto assim o pede, e é mais um demónio que se exorciza, o do frio. Indescritível o aroma que fica no ar e o quanto nos recondiciona a alma. Deitar a mão aos bolinhos de jerimu - abóbora-menina - de que ninguém quer estar longe é outro grande imperativo de consciência para o minhoto na proximidade do Natal..Em Trás-os-Montes a couvada de bacalhau marca o coração da ceia, e prepara-se canja de galinha, segundo a tradição para os que iam à missa do galo e queriam confortar o estômago. A galinha é cozida com hortelã e depois desfiada para dentro do caldo contundente e energizante que entretanto se produziu, juntamente com os miúdos da bicha. Também se serve vinho aquecido com canela. Em contraponto com a sumptuosidade transmontana, matriz quase luterana que obriga à eliminação total do símbolo, saem os caretos, os enfarruscados e a malta nova em festa, como que a evocar um Natal pagão e profundamente popular. Acontecimento telúrico, escreveu alguém, e é inteiramente verdade. O maciço continental, que liga de forma umbilical o nordeste transmontano ao norte da Europa é de extrema simplicidade e incrivelmente alegre. Atenção à caça de época, perdizes e veado particularmente, e aos excecionais caldos extraídos de ossos da suã (espinhaço) e do melhor fumeiro do mundo, que é o do eixo Valpaços-Bragança. O transmontano come em silêncio, mas à mesa está em festa. Na doçaria saem formigos em abundância, fórmula semelhante à que acabámos de visitar no Minho, e por Murça e não só produz-se um toucinho-do-céu de antologia. Do Natal ao Entrudo come-se tudo, dita bem a ansiedade latente nos rigores silenciosos da mesa natalícia..No Douro à doçaria costumeira há que acrescentar as maravilhosas sopas secas e os suculentos ovos queimados. Estamos numa zona que é quase nenhures, por estar tão adstrita às duas margens do Douro. Como a histórica e central D. Antónia Adelaide Ferreira algumas vezes referiu, os silêncios das gentes do Douro são gritos de obediência e perseverança e foram eles que definiram e traçaram a que continua a ser uma das mais brilhantes histórias coletivas do planeta. Não havia outrora no Douro quem não atendesse à missa do galo, aldeias engalanadas e mesas postas para o regresso do ofício religioso a que nem a pequenada escapava. Ainda hoje é assim, a missa do galo é parte e ponto de partida para os festejos em comunidade. Bacalhau, polvo e cabrito, com forte predominância deste último, compõem o colosso gastronómico que são as festas da quadra do Natal. Não se faz melhor cabrito assado que no Douro. O bicho é feliz, porque saltarilha na pedra junto da progenitora e os ares da altitude fazem-lhe bem. Do cabrito no Douro também se faz bom arroz, acamado no excelente azeite de que dispõe..Beira Alta, Beira Interior e Beira Litoral, em todos eles na consoada é denominador comum o bacalhau cozido com todos. Em Oleiros trabalha-se primorosamente o cabrito estonado, iguaria sem par na escala absoluta de sabor. O leitão é também primícia valorizada e consumida pelas três Beiras - por assim dizer mas imbatíveis são os enchidos gloriosos que aqui se preparam. A farinheira do Sabugal, que como é sabido é feita com pão em vez de farinha crua, é provavelmente a grande precursora da alheira, os maranhos da Sertã são peças deliciosas e petiscos divinos, o leitão assado da Bairrada é a glória nacional que todos conhecem. As migas do Natal, feitas com bacalhau lascado, grão e couve fazem salivar até o mais enfastiado e possuem a magia do azeite da Beira Interior, provavelmente o mais saboroso de Portugal. Não admira que mesmo os mais novos fiquem ansiosos, só perde mesmo para a proverbial troca de presentes a seguir à missa do galo. Do planalto granítico conhecido como Chãs de Ferreira, formado por Ferreira, Paços de Ferreira e Freamunde, vem a ave mais nobre de todas e, respeitados os preceitos da receita ancestral, sai o maravilhoso capão à Freamunde. A substituição apressada e enganada pelo peru em nada nos pôs mais felizes e será sempre coisa importada das Américas, apenas porque é grande e fica bem no centro da mesa. Há que devolver ao capão o trono da mesa de Natal, agora que é já IGP (indicação geográfica protegida) - e novos empresários virão fixar-se pelas chãs já referidas e o capão de Freamunde IGP conhecerá toda uma outra realidade..No Ribatejo, diz-se que "o Natal na praça e a Páscoa ao fogo faz o ano formoso", o mesmo é dizer que, apesar do frio, o melhor Natal ribatejano é o que não tem chuva e permite fazer grande parte da festa fora de casa. As famílias nobres mais abastadas partilhavam outrora a mesa com os empregados na véspera de Natal, refeição a que muitas vezes se dava o nome de jejum, significando exatamente o contrário. Farta ou magra, a mesa era de festa, com as toalhas mais alvas e a melhor louça. Estarmos perto de Lisboa e o bacalhau e o peru pontificam, como é evidente, mas os peixes de rio também. Não há caldeirada à fragateira como a que se processa ao longo das paragens ribeirinhas do Tejo, e não é de espantar se uma casa ribatejana puser uma fragateira na mesa no dia de Natal. Perto de Castro Daire faz-se o bolo podre, espécie de arrufada que tem muitos semelhantes mas iguais é que não. Mas claro que se assa e serve através do território quase todo das três Beiras..No Alentejo fazem sentir-se mais as peculiaridades, a mais importante das quais é... a consoada não ter grandes raízes. Até há bem pouco tempo, em Évora por exemplo bebia-se chocolate quente quando se vinha da missa do galo - os poucos que iam -, comia-se fatias douradas, bolos secos e pouco mais. Agora come-se bacalhau como no resto do país; melhor dito, como em Lisboa. No campo, pelo Alentejo fora, estavam todos no recolhimento, enfiados nas grandes lareiras junto ao fogo, o frio alentejano é assustador e a fé dos locais não é dada a ortodoxias. Já em Portalegre, nos cocurutos do distrito, janta-se alhada de cação, por exemplo, e adoça-se a boca com arroz-doce e farófias. Depois vai-se à missa do galo, finda a qual se alivia a larica que houver com carnes frias da vasta e boa salsicharia de fumeiro. No dia 25 ao almoço come-se canja de peru, e vem o peru assado para a mesa. Isto quando não é lombo de porco assado no forno. Peça nobre que se reserva da matança para consolo de todos..Chegamos ao Algarve e a linha é sobretudo de convívio e festa. Sai-se para a rua, entra-se e sai-se das casas, o único ato sacramental é o da amizade. Está frio mas suporta-se e as crianças asseguram o aquecimento do ambiente, corrupiando. É em festa ruidosa que acontece a ceia, adaptada às posses de cada família, mas sempre em toada alegre. Cheira a chouriça assada, que nunca pode faltar, há lombo de porco assado com pimentão ou carne de porco com amêijoas, criação popular do fabuloso barrocal algarvio, onde a fusão culinária mar-terra acontece naturalmente. Figos secos, queijos de figo, pinhões, doirados fritos a escorrer ainda o mel, filhós e empanadilhas de batata-doce são a doce terminação. Depois já está tudo inquieto no lugar, e vai-se para a rua conviver com passantes amigos e parentes..Os Açores têm a fantástica sopa do Espírito Santo, que leva carne de vaca, toucinho, fígado de porco, chouriço de carne e salsichas frescas. O polvo guisado com vinho de cheiro é outra maravilha, para não falar do tempero único que é a pimenta da terra. Pontificam, de qualquer forma, o bacalhau e a alcatra à açoriana. Imperdíveis os papos-de-anjo da Terceira e as fatias douradas com vinho..A Madeira volta-se para o bacalhau, carne em vinha-d"alhos e para o polvo, muitas vezes feito com molho de cerveja preta. Nos doces, há quem faça bolo de bolacha e amêndoa. O tempo é pouco e a missa do galo não pode impedir os madeirenses de sair para a rua e ver a lapinha, ou presépio.