"Conhecer o cinema de Buñuel é tão necessário como literatura clássica"
Há uma memória pessoal que liga Javier Espada ao cineasta Luis Buñuel. Para começar, ambos nasceram em Calanda, uma povoação aragonesa da província de Teruel, que se situa a cerca de 100 quilómetros de Saragoça. Dessa terra vem o mais célebre som ritualístico utilizado em alguns filmes do espanhol: os tambores de Calanda, que se ouvem na Semana Santa para assinalar a morte de Cristo.
Espada sempre conheceu bem a força de catarse deste som, mas foi apenas quando o ouviu no seu primeiro filme de Buñuel que ficou enfeitiçado: "A Idade de Ouro [1930] termina praticamente com os tambores de Calanda, e é quase como uma blasfémia cinematográfica, porque vemos aparecer nesse momento o Duque de Blangis - um dos libertinos do Marquês de Sade - com o aspeto de Cristo... é para lá de surpreendente!"
Esta visceral memória sonora que Buñuel levou consigo para o México, quando lá se exilou da Espanha franquista, está também presente no marcante final de Nazarín (1959), belíssimo filme baseado num romance de Benito Pérez Galdós que conta a jornada de um padre por humildes terras mexicanas. E neste contexto narrativo, Espada nota que há um sentido mais profundo para a sua aplicação: "O som dos tambores confere algo de atávico, de cósmico, que nos liga à terra, aos sentimentos íntimos, e no caso de Nazarín é um som que te dá conta da luta interior da personagem, da sua mudança - já não pensa tanto no divino e assume o seu fracasso como ser humano."
Tanto A Idade de Ouro como Nazarín estão programados no ciclo 25XBuñuel, que arranca amanhã em Lisboa (Espaço Nimas) e no Porto (Teatro Campo Alegre). No passado domingo, o estudioso da obra do cineasta e fundador do Centro Buñuel de Calanda apresentou, no cinema Monumental, o seu documentário Tras Nazarín (2015), que através de fotografias de rodagem do filme faz um percurso pelos lugares, ao mesmo tempo que se abre a um olhar sobre a personalidade de Buñuel. Espada sublinha a importância da relação simbólica entre essa paisagem mexicana e a espanhola: "Buñuel esteve exilado até 1961, tinha então 61 anos e foram quase 30 sem pisar solo espanhol. Então sente uma nostalgia nos lugares que lhe evocam a sua infância, nomeadamente com ruas de terra batida. Em Nazarín, tratando-se de um filme que é um pouco como Dom Quixote, que vai percorrendo muitos lugares, a paisagem é muito especial. Para além disso, ele quis que o protagonista [Francisco Rabal] fosse espanhol, para que tivesse esse ponto de ligação à terra natal."
Apesar da investigação dedicada a Nazarín, Javier Espada diz que o seu filme predileto de Buñuel é Os Esquecidos (1950): "Um filme que cria um novo tipo de cinema, que não só conta uma história como também denuncia uma injustiça. E o que Buñuel demonstra com ele é que o cinema serve para mais coisas além do entretenimento. Há aqui um traço de neorrealismo italiano, em voga naquela altura, que se complementa com o seu traço surrealista. Acho que é um filme que resume um pouco toda a obra de Buñuel: estão lá as suas obsessões e as questões sociais." E há também um discreto vínculo a Espanha: "Essa ligação não se faz tanto pela paisagem, mas nota-se a influência do romance picaresco espanhol e mesmo das pinturas negras de Goya, vestígios que têm que ver com a cultura de um espanhol que chegou ao México com mais de 40 anos de idade, já não sendo capaz de se adaptar à cultura de outro país."
Com efeito, aquilo que definiu Luis Buñuel nos primeiros anos de carreira nunca o abandonou. Falamos, claro, do surrealismo livremente encetado em Um Cão Andaluz (1929), ao lado de Salvador Dalí. Como Espada recorda, ele entrou e saiu do movimento mas nunca deixou de o reproduzir ao longo de toda a sua obra: "Buñuel era surrealista antes de ser surrealista. E este surrealismo sui generis reflete-se tanto quando está dentro do movimento, no âmbito do qual só fez A Idade de Ouro, como no seu filme seguinte, o documentário Las Hurdes - Terra Sem Pão [1933]. Acho que é muito importante lembrar que o surrealismo não era apenas um movimento estético - implicava uma ética, uma moral. Era um movimento que queria mudar o mundo, e mudá-lo à base de escândalos. Hoje pode parecer um pouco ingénuo mas naquela época as suas provocações tinham resposta... Por exemplo, A Idade de Ouro foi atacada por jovens fascistas franceses, e havia uma Liga anti-judaica que era tão ou mais forte que a da Alemanha de Hitler! Atacaram o filme, a sala de cinema, atiraram tinta contra a tela, destruíram uma exposição de obras surrealistas... e o filme esteve proibido em França durante 50 anos." Proeza de uma ofensa tão grande Buñuel só voltaria a repetir em 1961 com Viridiana, que foi excomungado pelo Vaticano e proibido em Espanha (país que o produziu). Venceria a Palma de Ouro em Cannes.
Cineasta de vigorosa expressão visual, poucos como ele conseguiram criar uma filmografia tão coesa nos detalhes e respetivo simbolismo dentro de um universo próprio. Sabendo que Buñuel estudou Entomologia (área da Biologia que estuda os insetos) antes de se dedicar ao cinema, perguntámos a Espada como é que pormenores como este da vida do realizador se traduziram nos seus filmes (e há, de facto, uma recorrência de insetos): "Buñuel é um poeta da imagem, e às vezes a poesia implica um ritmo, uma repetição de palavras. Então há imagens que se repetem de forma obsessiva no seu cinema - exemplo das caixas, que despertam a curiosidade no espectador e cuja referência mais famosa será a de A Bela de Dia [1967]. Desde logo, a Entomologia é um desses elementos repetitivos, com os insetos e animais a aparecerem em muitos filmes e várias vezes em primeiro plano." A isto se associa ainda a religião: "Buñuel, por um lado era ateu, por outro lado, com o seu olhar de entomólogo, era fascinado pelos religiosos. Analisava-os cientificamente como se fossem insetos: a maneira como se movem, os seus rituais... E sempre disse que era muito respeitoso em relação às pessoas - o que lhe interessava era a religião e suas práticas."
Com um humor refinado para tudo, também evidente no trato, era difícil distinguir quando fazia uma piada ou falava a sério. É conhecida a sua fantasia que imaginava a própria família reunida a ler o seu testamento, em que aparecia lá escrito que tinha deixado tudo a Rockefeller, mas também, conta Javier Espada, se metia com alguns atores para lhes diminuir a vaidade. Dizia, "Bem, quantos primeiros planos vocês querem? É que eu cobro os primeiros planos", e lá alguém perguntava, "Quanto cobra?" Depois de perceberem que era uma brincadeira ficavam com os pés assentes na terra.
Qual a importância de ver a obra de Luis Buñuel hoje? "Quem não descobrir está a perder uma parte importante da história do cinema. Conhecer Buñuel é tão necessário como literatura clássica." Por isso mesmo, fica a sugestão já da primeira sessão do ciclo, Ele (1953), filme baseado num romance autobiográfico de Mercedes Pinto, sobre a paranoia de ciúmes do seu marido. "Buñuel sentia-se refletido nesta história, porque ele também era muito ciumento, e acabou por fazer uma espécie de paródia de si próprio."