Confissões num palco da Broadway

O registo do espectáculo <em>Springsteen on Broadway</em> não é uma mera coleção de canções: <em>The Boss </em>oferece-nos uma verdadeira performance, exemplar da arte de estar em palco.
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Face a um filme como Springsteen on Broadway (Netflix), a primeira e deliciosa dificuldade que encontramos é a sua simples descrição. Que objeto é este, afinal?

A localização do evento, "on Broadway", não deve ser confundida com a mitologia dos palcos recheados de adereços feéricos e esplendorosas imitações dos musicais de Hollywood (aliás, em boa verdade, foi o contrário que aconteceu: o cinema americano das décadas de 1940-50 colheu o essencial da sua inspiração nos palcos dessa zona de Nova Iorque que é o centro da indústria teatral made in USA). O que, em qualquer caso, não exclui um dado essencial: dirigido por Thom Zimny, este é o registo de um espetáculo que Bruce Springsteen manteve no Teatro Walter Kerr, entre outubro de 2017 e dezembro de 2018, num total de 236 performances.

O que, realmente, surpreende é a extrema solidão do protagonista: são duas horas e meia (fascinantes!) de Springsteen em palco, uma guitarra, um piano, e apenas durante alguns minutos a companhia de sua mulher, Patti Scialfa. Estamos perante um exercício confessional, em muitos aspetos concebido como uma derivação teatral da autobiografia Born to Run (edição portuguesa: Elsinore, 2016).

Os títulos de algumas das canções podem ajudar. Assim, usando apenas traduções literais, lembremos que Springsteen canta coisas como Crescer, A Minha Cidade Natal, A Terra Prometida, Nascido nos EUA, Terra de Esperança e Sonhos, etc. Dito de outro modo: dos tempos heroicos do álbum de estreia, Greetings from Asbury Park, N. J. (1973), até registos mais recentes como The Rising (2002) ou Western Stars (2019), a obra musical daquele que conquistou o cognome de The Boss cruza-se, confunde-se e, de alguma maneira, reinventa-se através das suas vivências mais pessoais, por vezes mais secretas.

O que, entenda-se, não se esgota na imagem redentora do "trovador" que vem cantar alegrias e traumas do seu país. Claro que há uma dimensão de testemunho muito pessoal que sempre existiu no compositor e cantor de Born in the USA, verdadeiro hino identitário que é (também) uma desencantada evocação da guerra do Vietname. Ao mesmo tempo, Springsteen não se acomoda no estatuto de "herói" que nunca foi. Diz mesmo, num misto de objetividade e ironia: "Nunca pus os pés numa fábrica, mas só escrevo sobre isso."

Daí a singularidade dramática deste concerto valorizado pela sóbria filmagem de Zimny. Ele é, há muitos anos, um colaborador essencial no registo de concertos e telediscos de Springsteen: os dois repartiram a assinatura da realização de Western Stars (2019), dedicado às canções do álbum homónimo (disponível nos canais TVCine). Sem ceder à tentação de se limitar a interpretar um best of dos seus álbuns, Springsteen afirma-se como um verdadeiro homem de palco, exemplar na arte de dizer palavras muito pensadas, afinal partilhando connosco um genuíno gosto teatral. O que ilustra uma verdade antiga: somos sempre atores da nossa própria história.

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