Comporta já mexe com portugueses... e bom tempo

Noutros anos, por esta altura, já haveria mais turistas estrangeiros - agora os que há têm casa na região - mas o sol e o desconfinamento já trazem muitos portugueses à praia.
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São três da tarde e o sol queima os corpos estendidos no areal da Comporta. Umas quantas dezenas de pessoas antecipam a abertura da época balnear e aproveitam o bom tempo que maio lhes trouxe - sol e mar é uma boa terapia para diminuir a neura que quase dois meses de confinamento instalou nas nossas cabeças. Quem pode, como vai deixar de aproveitar estas dádivas da natureza? A mesma natureza que, sem avisar, espalhou pelo planeta um vírus que obrigou meio mundo a trancar-se em casa, fazendo mais de 300 mil mortes e cinco milhões de doentes.

À mesma hora, meia dúzia de pessoas estão sentadas à sombra da árvore no Largo de São João, no centro da aldeia - décadas antes de a Comporta constar nos roteiros turísticos internacionais os habitantes esperavam ansiosamente pelo dia do santo (24 de junho) para o festejar. Havia bailaricos, estreavam-se roupas e havia competição para ver quem ia mais bem vestido. Eram outros tempos, em que se vivia sobretudo das lavras do arroz, do trabalho no campo e da pesca na Carrasqueira, onde muitas famílias viviam em cabanas de colmo - que agora inspiram as casas de milhões.

Aqui no largo, não é do passado que se fala. Nas mesas da esplanada do clube recreativo (ainda fechado), as restrições impostas pela covid-19 e as obras da estação de tratamento de águas residuais (ETAR) eram o tema de conversa para os habitantes da terra. Cada um dá a sua sentença: que as ruas estão uma lástima por causa dos buracos que tiveram de fazer para os esgotos e que têm de pôr alcatrão até junho para não dar mau aspeto para os turistas - "o pó que isto levanta!"; que se há coisas onde não se vai respeitar as regras é na praia e nos restaurantes, que não vão conseguir cumprir o distanciamento social. Porque quando vier o calor, fartinha de estar em casa, toda a gente vai querer banhos de mar e boa comida para compensar a proibição de ir a um restaurante durante mais de dois meses.

No areal que se estende de Troia a perder de vista para sul, as pessoas estão distantes, parecem poucas. Ninguém diria que no parque de estacionamento estão quase cem carros. E é quarta-feira. No fim de semana passado esteve quase lotado, a aldeia encheu-se de gente, diz quem lá vive a deixar escapar saudades do movimento dos veraneantes; neste os termómetros sobem acima dos 30 graus e esperam-se ainda mais visitantes.

Um concelho (praticamente) sem covid-19

A Comporta já mexe, menos do que noutros anos, mas a diferença é que são sobretudo portugueses que a visitam. A pandemia tem afastado os estrangeiros, mas ainda assim, aqui e ali, ouve-se falar outras línguas. Muitos desses estrangeiros têm casa na região e fizeram ali a quarentena. O mesmo aconteceu com portugueses proprietários de uma segunda habitação que preferiram passar o período de confinamento num local tranquilo, onde os casos do novo coronavírus praticamente não existem - no relatório epidemiológico da DGS, no concelho de Alcácer do Sal, a que pertence a freguesia da Comporta, há sete casos de covid-19 confirmados.

Cavalos na Areia é uma das atividades que mais glamour emprestam à Comporta - quem nunca desejou atravessar os arrozais, subir as dunas e cavalgar na praia? Por causa da pandemia, neste ano não poderão dizer que estiveram abertos os 365 dias do calendário. E também por causa da pandemia o perfil dos clientes mudou. José Ribeira explica que se até aqui 90% dos clientes eram estrangeiros, desde que abriram, a 4 de maio, 98% da procura provém de portugueses.

"A campanha que fizemos de não cobrar serviços privados resultou muito bem. Fizemos igualmente uma campanha com um preço especial para os profissionais de saúde, que pagam 50 euros." O preço de um passeio a cavalo é de 70 euros por pessoa. Quem pedia um passeio privado, além deste valor, via acrescentado mais 150 euros à fatura. Mas, para garantir a segurança sanitária, decidiu-se que não há misturas de grupos, nem sequer as pessoas se cruzam no mesmo espaço nas cocheiras. Outras regras de higiene e o uso de luvas para segurar as rédeas dos cavalos são escrupulosamente cumpridas.

O mês de maio, acrescenta José Ribeira, era o pior mês para os Cavalos na Areia, quer pela proximidade do verão quer pela proximidade da Páscoa. "Neste ano foi ao contrário, estamos completamente cheios, mesmo sem estrangeiros."

Os negócios ligados ao turismo são diversificados. Também quem tem alojamento local notou uma procura por parte dos portugueses, mal entrou em vigor a primeira fase do desconfinamento.

Os vestidos da "senhora da carrinha"

Quem gosta de comprar vestidos e túnicas ao estilo hippie chic a preços mais acessíveis não dispensa uma ida à loja Dona Zé. É o caso de Marta Almeida, que tem casa em Sol Troia e veio até à Comporta. Não fez a quarentena na região, mas sempre que pode aproveita os bons ares do campo e da praia. "Sol Troia e o Pestana estão cheios de gente", conta, enquanto lamenta o rumo que a zona está a tomar. "Está muito na moda, não tem restaurantes para toda a gente, no verão passado foi notório. Vem muita gente e se continuarem a fazer investimentos num target mais alto não se democratiza a zona. Arrisca-se a perder a mística."

A Dona Zé - ou melhor Maria José Santana -, como todos os comerciantes, quer que venha mais gente. "Aqui vêm das mais chiques às menos chiques, às pessoas da terra. Como se costuma dizer, do médico ao juiz." Sempre foi assim: há mais de 30 anos que vende roupas na Comporta, começou com uma carrinha e instalava-se junto ao Supermercado Gomes - outro local de passagem obrigatória, pela diversidade de produtos expostos, do gourmet ao mais tradicional, e que nos tempos da Atlantic Company, dona da Herdade da Comporta, se chamava "cantina". Maria José e o marido assentavam ali arraiais e era ver a fila de freguesas a remexer nas roupas expostas na rua em cabides. E a experimentá-las mesmo na rua.

"Ainda me chamam a senhora da carrinha. Algumas dizem que têm saudades daquela altura", conta a Dona Zé que deixou a venda ambulante há oito anos para abrir a loja.

"Noutros anos, mesmo nesta altura, ia às compras duas ou três vezes por semana, agora tenho ainda a coleção de primavera toda parada." Há duas razões que a impedem de ir às compras: por um lado não ter conseguido escoar o que tem no estabelecimento, por outro, o facto de os grandes armazéns estarem encerrados - as lojas com mais de 400 metros quadrados só reabrem a 1 de junho.

O prazer de comer a ver o mar

No areal aproveita-se o sol do desconfinamento. No Comporta Café, o único dos dois restaurantes junto da praia que reabriu, goza-se da vista de mar enquanto se saboreia a refeição - por agora são apenas servidos almoços das 12.30 às 16.00.

"Estamos todos a aprender. Nesta fase queremos o mínimo de clientes possível. Não estamos a funcionar com 50%, mas sim com 25 % da nossa capacidade, para evitar que haja grandes enchentes e cruzamento de pessoas", diz Luís Carvalho, proprietário do restaurante e do bar de praia Mosquito, que pretende reabrir a 6 de junho - até porque é junto ao bar que estão as casas de banho públicas, ainda encerradas, e se há período que justifique restringir o acesso ao WC do restaurante é durante uma crise sanitária.

A praia da Comporta tem três espaços de concessão, dois são de Luís Carvalho e o terceiro do restaurante Ilha do Arroz. Aos três metros entre sombras exigidos pelas novas regras, Luís garante que vai acrescentar mais um. De resto, acredita no bom senso e que cada um saberá ser responsável por si e pelo cumprimento das regras de distanciamento. Até porque, sublinha, numa praia com uma extensão de 45 quilómetros não se justifica que as pessoas estejam todas em cima umas das outras.

Otimista por natureza, este que foi um dos primeiros forasteiros empreendedores na Comporta considera que, apesar das restrições, vai correr tudo bem. "Será um ano sem grande euforia no turismo, sem grandes resultados económicos, mas o importante é conseguir manter os postos de trabalho", antecipa o proprietário do Comporta Café, para quem uma das grandes preocupações foi que os funcionários estivessem bem preparados para lidar com as novas regras e criassem novas rotinas.

"Isto devia estar paradinho mais um tempo"

A abolição da limitação de passageiros nos aviões a partir de junho poderá trazer mais estrangeiros para o país e para a Comporta - embora sublinhe que sempre teve uma clientela preferencialmente portuguesa, também Luís Carvalho nota a ausência de estrangeiros no restaurante, vão lá os que têm casa na região.

Pela estrada, da Comporta até ao Pego são menos de 20 quilómetros. Um caminho ladeado pelos arrozais que ainda estão a ser semeados, mas que não tardarão a ficar verdinhos. Aqui, o Sal - considerado o melhor restaurante de praia do mundo pelos leitores da revista de viagens Condé Nast em 2015 - anda em preparação para reabrir em segurança no próximo dia 26. "Queremos estar preparadíssimos e ter tudo impecável", afirma Vasco Hipólito, sócio-gerente.

No Largo de São João, no centro da aldeia da Comporta, outras protagonistas procuram agora a sombra da árvore, também elas gente da terra. Maria da Graça, que já teve um estabelecimento de restauração, antecipa que no verão, dadas as restrições, os restaurantes vão ser alvo de muita reclamação. E teme esta chegada abrupta de gente, mal os termómetros começaram a subir. "Estivemos fechados em casa durante dois meses e de repente vem para aqui uma quantidade enorme de pessoas. Isto devia estar paradinho mais um tempo."

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