Companhia Maior: envelhecer a fazer o que mais se gosta

São reformados mas não ficam em casa. Eis alguns dos atores da companhia que estreia amanhã, no CCB, "Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare".
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Com o seu fato de licra e malhas cor-de-rosa, Kim destaca-se do grupo de bailarinos a ensaiar numa sala do Palácio Ribamar, em Algés. São todos ex-bailarinos da Companhia Nacional de Bailado e do Ballet Gulbenkian e amigos há muitos, muitos anos, que tiveram de deixar de dançar devido a lesões ou à idade e, então, decidiram juntar-se para uma aula informal de ballet clássico às quartas-feiras de manhã. "Quando uma pessoa se sacrifica uma vida inteira para fazer uma coisa de que gosta muito é muito difícil parar. Temos uma vida muito ativa e, de repente, já não temos aulas todos os dias. É complicado", admite a americana Kimberley Ribeiro, que está quase a fazer 65 anos. "Este é um dos meus momentos preferidos da semana."

Lutar contra o sedentarismo e fazer algo que lhes dá imenso prazer, ainda que com dificuldades - esse é o grande desafio dos mais de 20 atores que integram a Companhia Maior, criada em 2010 por iniciativa de Luísa Taveira e do Centro Cultural de Belém, e que é um grupo profissional composto por pessoas com mais 60 anos. Fazem um espetáculo diferente todos os anos, com um encenador convidado - já por lá passaram nomes tão diversos como Tiago Rodrigues, Mónica Calle ou Filipa Francisco. O trabalho começa meses antes, com vários workshops e depois com os ensaios, cada vez mais intensos até à estreia, geralmente em novembro ou dezembro.

Do folclore à zumba

"Sou uma das mais jovens", conta Kim que, no próximo espetáculo, interpreta Titânia, a rainha das fadas, em Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, numa encenação de Tónan Quito. "Já conhecia bem a história, já fiz o bailado. Mas desta vez tenho que dizer o texto, é um outro desafio." Ela sempre foi bailarina. Começou a dançar aos três anos e foi amor ao primeiro plié. Tinha pouco mais de 20 anos quando, numa digressão com o seu grupo na Europa, esteve em Lisboa e gostou tanto que decidiu ficar. Fez audições para a Companhia Portuguesa de Bailado Verde Gaio e, depois, em 1977, integrou a Companhia Nacional de Bailado. "Depois de ser bailarina, fiz assistência de ensaios, fiz dança de caráter naqueles papéis de rainha, fui touring manager. Eu queria continuar porque achava que ainda podia ser útil na companhia, mas tive que me reformar."

A mudança abrupta no estilo de vida não foi fácil. "Tinha uma vida muito ativa e parei. E depois também há os amigos, que eram os meus amigos de uma vida inteira, e de quem nos afastamos." Mas Kim recusou-se a parar. Deu aulas durante alguns anos e hoje em dia divide-se por múltiplas atividades. De manhã vai ao ginásio, intercala as aulas de yoga com as de ginástica e ainda faz natação. Duas vezes por semana, ensaia com o grupo de folclore da TAP, ainda tem um grupo com quem dança zumba e está sempre pronta para se deixar desafiar (ainda no outro dia esteve a dançar kuduro com a Blaya). Às quartas-feiras encontra alguns dos velhos amigos nesta aula de ballet, entre muitos risos. Afinal, nenhum deles consegue já fazer os saltos e os movimentos com a perfeição de outros tempos, mas todos dão o seu melhor: "Tenho a preocupação de me mexer. Até porque se parar sei vão começar as dores no corpo."

Em Sonho de Uma Noite de Verão, Kim contracena com António Pedrosa, o ator que faz Oberon. São um par romântico improvável: ela, com a sua pronuncia enrolada e um corpo invejável, ele ator de palavras bem ditas mas com movimentos lentos devido a uma doença que o afeta cada vez mais. António tem 74 anos e também está na Companhia Maior desde a sua fundação mas não sabe se poderá continuar: "Estou a fazer este esforço pelo Shakespeare", diz, enquanto caminha lentamente, da sala de ensaios até ao elevador que o há de levar ao bar dos artistas do CCB.

"Gosto de pessoas, de conversar, de ouvir, de comunicar. O teatro tem tudo a ver comigo", explica. Foi no grupo de teatro dos trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos (onde trabalhou quase toda a vida) que teve as suas principais experiências em palco, com Jorge Listopad e Rogério de Carvalho como grandes mestres. "Fui protagonista no Tio Vânia, de Tchekhov, um espetáculo amador mas que ganhou prémios da crítica", recorda. Mas o teatro acabou por ficar de lado, pois havia uma vida para levar e quatro filhos para criar. A possibilidade de voltar ao teatro, com a Companhia Maior, tem sido uma das experiências mais valiosas destes últimos anos. "É uma maneira de fugir do ramerrame dos reformados e permitiu-me uma qualidade de vida que de outra maneira não teria", admite. "É importante que as pessoas possam viver com prazer e que possam dar alguma coisa de si." É por isso que, mesmo devagarinho, o ator continua a subir ao palco.

Martelar o texto a caminhar

Às sextas-feiras à tarde, Maria Helena Falé senta-se ao microfone. E lê. Durante duas horas, lê um livro em voz alta com a sua voz bonita, a dicção perfeita, a entoação perfeita, como quem conta uma história. Maria Helena é voluntária da área de leitura especial da Biblioteca Nacional há quase 30 anos. O seu trabalho é gravar audiolivros para a população invisual e os doentes acamados. Também é voluntária na Rádio Renascença. "Faço locução no [podcast] Passo a Rezar. Não sou católica, mas gosto muito de fazer locução, é aquilo que mais gosto de fazer. E não me engano, gravo quase sempre à primeira", conta Helena, que antes de ser atriz teve uma vasta experiência não só na locução como no jornalismo, primeiro na rádio e depois na televisão.

Talvez se lembrem dela dos programas de rádio 1-8-0 ou de Quando o Telefone Toca. Ou talvez saibam que foi ela que disse pela primeira "boa noite", em português, na televisão de Macau, na sua abertura em 1984. Nos últimos anos, já reformada, descobriu que podia usar tudo o que tinha aprendido na rádio e na televisão para fazer algo diferente - faz publicidade, narração de programas de TV, até representar pequenos papéis em séries e novelas como A Lenda da Garça, Todo o Tempo do Mundo, Depois do Adeus ou Bem-vindos a Beirais. Aos 70 anos, Maria Helena Falé continua a fazer toda a sua vida de saltos altos - "até corro, não me cansam nada" - e tem o espírito tão jovem quanto a sua voz. "Não tenho complexo nenhum com a idade, é sinal de que ainda cá ando", diz, divertida. Há três anos, entrou para a Companhia Maior e está encantada com a sua personagem em Sonho de Uma Noite de Verão, Hipólita, a rainha das amazonas. "Levo aquilo muito a sério e não é nada fácil. Mas diverte-me imenso."

Essa parece ser a opinião de quase todos os que têm ensaiado no CCB. O texto de Shakespeare, com os seus longos monólogos, tem sido o grande desafio. "A memória já não é como era", justifica-se Carlos Nery, de 83 anos. Todas as manhãs, Carlos calça os ténis e vai passear num jardim perto de casa. Ao mesmo tempo que caminha, em passo acelerado, durante cerca de uma hora, vai revendo as falas do seu duque Teseu. "Ando a martelar o texto. Este local tem-me ajudado bastante", conta.

A memória é mesmo a principal inimiga deste ator que começou a sua carreira, há mais de 60 anos, no Teatro Experimental do Porto, com António Pedro, onde fez o Macbeth, de Shakespeare. Também passou pelo CITAC, pela Guilherme Cossoul e pelo Primeiro Acto, entre outras experiências, e até quando esteve na Guiné, como militar, fez teatro. Era a sua grande paixão mas, para pagar as contas, tinha que ter um emprego mais seguro e tornou-se bancário. "Participei no espetáculo Casimiro e Carolina, na Cornucópia, e fui convidado a ficar lá mas não aguentei o esforço que aquilo exigia. Quando se está no teatro, não conseguimos adormecer antes das duas da manhã e depois eu tinha de acordar cedo para ir para o banco..." Desistiu do teatro e "quando pensava que já tinha arrumado as botas" surgiu a oportunidade de entrar na Companhia Maior.

"Isto alterou profundamente a minha vida. Hoje, a roda dos meus amigos é gente ligada ao teatro e ás artes. Sobram-me poucos amigos das minhas outras experiências, do banco e da atividade militar. A maior parte dos meus amigos, das pessoas que vejo quando vou ao teatro, que abraço, são ligados a esta atividade. De modo que nem sei bem conceber como seria a minha vida sem a Companhia Maior. Seria algo bastante diferente", conta Carlos Nery. Hoje, com três filhos e seis netos com quem passa grande parte do seu tempo livre, faz, finalmente, aquilo de que gosta. "Ainda não preciso de andarilho nem de corneta acústica", brinca, e enquanto assim for vai continuar a desafiar-se no palco. Ele e toda a Companhia Maior.

Sonho de Uma Noite de Verão
De William Shakespeare
Companhia Maior com encenação de Tónan Quito
Centro Cultural de Belém, Lisboa
sexta e sábado, às 21.00, e domingo às 16.00
Bilhetes: 12,50 euro/15 euro

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