Como um jornal português escapou à censura durante todo o Estado Novo
O confinamento e o fecho das livrarias adiaram por (mais) dois meses a revelação de uma história que o professor Rui Correia esperava contar ao mundo desde há 20 anos. Escreveu-a em tempo de pandemia, e finalmente vê-a chegar às livrarias neste abril, à venda a partir de hoje.
Este cruzamento de Rui Correia com a história veio embrulhado num "monte de coisas" que comprou num alfarrabista, vício antigo que lhe tem proporcionado as maiores surpresas. Uma delas lá estava: uma fotocópia de um artigo do Diário de Notícias, a responder a um outro artigo - da revista Time, datado de 22 de julho de 1946. E nesse (que afinal acabaria por ser a ponta deste novelo) da autoria de Percy Knaught, o regime de Salazar era descrito como "corrupto e ditatorial, inspirado pelo fascismo de Mussolini, e nele o autor reprovava a volante neutralidade de Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Perante tal "acervo de condenações, a revista Time foi então proibida em Portugal e o seu correspondente em Lisboa (o jornalista italiano de nome Saporiti) foi convidado a abandonar o país", conta Rui Correia.
Mas o artigo que foi parar às mãos de Rui Correia o que fazia, afinal, era criticar o artigo da Time, não por excesso mas por defeito, revelando que "a realidade de Portugal era muito pior do que aquela descrita". Incrédulo com o teor da publicação que julgava ser do DN - o cabeçalho era praticamente igual - teve a certeza de que "era impossível, em pleno Estado Novo, perante a inexistente liberdade de imprensa, um artigo daqueles ser publicado em Portugal". Numa leitura mais pormenorizada, percebeu que afinal aquele era "um outro Diário de Notícias, publicado a partir de New Bedford".
O que se seguiu foi uma longa viagem pela história da imprensa portuguesa publicada lá fora, e ao mesmo tempo pelos caminhos da emigração. Gorada a tentativa de encontrar alguma coleção do jornal na Biblioteca Nacional, avançou com uma candidatura à Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), que haveria de lhe permitir ir atrás da história do diário português e da comunidade de New Bedford, no estado norte-americano do Massachusetts.
"Passei lá dois intensos meses, com o apoio do Centre for Portuguese Studies and Culture, da University of Massachusetts Dartmouth". Quando chegou, Rui Correia não sabia mais nada do jornal. Procurava a coleção completa da publicação, que lhe permitisse desvendar "quem eram os portugueses que o faziam, que nele escreviam" como é que enquanto em Portugal a imprensa vivia sob o jugo da censura naquela época, um jornal lusófono gozava daquela liberdade de pensamento e de ação. Foi aí que se abriu um admirável mundo: "Percebi que havia uma coleção microfilmada na biblioteca da universidade, e durante dois meses mergulhei nessa história, do diário que se publicou entre 1919 e 1973".
"Descobrir um órgão de comunicação em língua portuguesa que não estivesse sujeito ao apertado nó da vigilância estatal e, assim, conhecer outra face da mesma moeda, tornara-se, para qualquer cidadão, ao tempo de Salazar, uma missão clandestina, excêntrica e muito dificultada", escreve Rui Correia na introdução de Salazar em New Bedford, lembrando que "muitos portugueses emigrados ou exilados, de todas as orientações políticas, procuravam criar estruturas de comunicação no estrangeiro que dessem voz a quantos se não reviam nos propósitos e nas práticas do programa político da ditadura que se instalara em Portugal". Na América, um fervilhante ativismo político ganhava corpo através de jornalistas, políticos e mesmo ministros que ali escapavam à polícia política portuguesa.
O livro de Rui Correia - publicado pela Guerra & Paz - não conta apenas a história de um jornal "distante de Portugal mas nunca arredio", que acolheu nas suas páginas monárquicos e republicanos, socialistas, liberais, fascistas", que além disso constitui uma radiografia do "movimento social das nossas colónias em todos estes EUA, e em especial da Nova Inglaterra".
Assim escreve o fundador do diário, no seu primeiro editorial. Guilherme Machado Luiz era um açoriano (nascido em 1879 em Angra do Heroísmo) que emigrara para New Bedford aos 14 anos. Quando chega, quase menino, é analfabeto, mas haverá de estudar - enquanto trabalha na indústria têxtil, que domina na região - e tornar-se uma influente figura da comunidade, conhecido como "o pai do português". Reunido algum pé-de-meia, Guilherme Luiz estabeleceu-se desde 1909 no comércio de passagens marítimas, bem como na transferência de dinheiro entre os EUA e Portugal. Em 1919 compra um jornal já existente - O Alvorada - e mais tarde muda-lhe o nome para Diário de Notícias. Ao mesmo tempo, constrói um edifício de dois andares, que serviria de residência da sua família e redação do jornal, no primeiro piso, e no rés-do-chão a tipografia "com as rumorosas máquinas de linótipo", escreve Rui Correia.
Por ironia, o jornal que foi o maior estandarte da liberdade de expressão a partir de New Bedford (e que levou até o ministro de Salazar, António Ferro a querer percebê-lo melhor e a escrever lá, também), deixa de se publicar um ano antes do 25 de Abril de 1974. Com a morte do fundador, em 1965, a família ainda o mantém, mas acaba por fechar o jornal 54 anos depois da fundação, deixando um legado de mais de 16 mil edições.
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