Como Roberto Martínez tornou Portugal numa máquina de ganhar jogos
Dia 23 de março de 2023. Roberto Martínez estreou-se no comando da seleção portuguesa, com um triunfo diante do Liechtenstein (4-0). Os portugueses festejaram o triunfo, mas não viram o momento em que o selecionador abordou todos os funcionários da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) envolvidos na organização em Alvalade, chamando-os pelo nome e agradecendo-lhes o trabalho.
Se na altura a amabilidade do treinador causou estranheza, por ser novidade, hoje já todos encaram o gesto como um ato normal do técnico, que faz do respeito mútuo motivação extra. Seja com o tratador da relva da Cidade do Futebol, o analista ou o capitão, a empatia foi recíproca e imediata, e ajudou ao bom ambiente que levou ao apuramento mais precoce de sempre, à vitória mais expressiva da história da seleção (9-0 ao Luxemburgo) e ao primeiro lugar do grupo J com um recorde de oito vitórias.
Os apuramentos imaculados ao serviço dos belgas (2016 a 2022) foram determinantes para a escolha da FPF. após a saída de Fernando Santos. Mas, antes de falar de futebol, Martínez quis entender a história da seleção, aprender o hino e a língua (teve aulas de português vários dias por semana e continua as lições), porque, segundo ele, há um sentimento à volta da seleção que vai para lá das vitórias. Chegou a dizer "olá", "bom dia" e "obrigado" e passados três meses já se expressava em português nas conferências.
Depois conquistou e blindou o balneário. O selecionador visitou e falou pessoalmente com os 26 jogadores que estiveram no Mundial 2022 - fez mais de dez viagens, além das deslocações internas -, a começar por Cristiano Ronaldo, em Riade. O que alguns viram como uma possível subserviência ao capitão, era afinal o ponto chave de todo o projeto, leia-se apuramento para o Euro 2024.
Martínez precisava de saber se contava com CR7 ou se tinha de lidar com o adeus do capitão e um balneário à procura de líder num grupo naturalmente frustrado pelos acontecimentos do Qatar. Ronaldo transmitiu ao selecionador que queria continuar e mostrou na fase de qualificação que ainda pode dar muito à equipa - fez nove golos em sete jogos.
O técnico espanhol não tolera faltas de empenho e tem dificuldade em perceber polémicas à volta das convocatória. Consciente de que nunca haverá uma lista consensual, justificou a chamada de João Félix e João Cancelo, numa altura em que não jogavam, com o talento individual, característica que valoriza num jogador, conjugando-o em prol do rendimento coletivo. Bernardo Silva e Bruno Fernandes são exemplos disso, não só coabitam no mesmo onze como se potenciam.
Para Martínez, tirar o melhor de Ronaldo é tirar o melhor da equipa e esta fase de qualificação tem sido um rol de experiências bem sucedidas, seja com João Félix, Gonçalo Ramos, Rafael Leão ou Diogo Jota. E apesar de começar por apostar num esquema de três centrais foi evoluindo para a tal flexibilidade tática, que lhe permitiu usar mais vezes a defesa a quatro.
Um dos segredos do sucesso de Martínez é fazer a seleção funcionar como um clube. Para o selecionador não há trabalho apenas de mês a mês. Mesmo que a seleção esteja um largo período sem jogar, reúne-se quase diariamente com o staff (em quem confia cegamente), analisa relatórios, visita jogadores, fala com treinadores de clubes, faz observações ao vivo e antecipa cenários. Por exemplo, enquanto a seleção goleava a Bósnia (5-0), o adjunto Jesús Seba tirava notas no Islândia-Liechtenstein (4-0), duelo juntou os próximos adversários da seleção já em novembro.
Martínez vive praticamente na Cidade do Futebol e faz questão de ser ele próprio a certificar locais de estágio e hotéis onde a seleção pode ficar. Quando soube que ia defrontar o Luxemburgo no Algarve, depois da deslocação à Eslováquia, tirou uns dias para visitar o hotel recomendado para o estágio e pediu algumas alterações de forma a seguir de Bratislava direto ao Algarve, sem passar pela Cidade do Futebol.
Ter uma geração de enorme talento também ajudou. Começou com uma lista de cerca de 200 jogadores, que foi reduzindo até chegar aos 82 que monitoriza atualmente com recurso a uma ferramenta de Inteligência Artificial - analisa o sistema tático em que jogam, a condição física, a posição, o calendário de jogos, os minutos por jogo e dados de desempenho ao minuto.
O grupo dos potenciais convocados e de onde sai a lista dos 35 pré-convocados que vai para a UEFA ou FIFA 15 dias antes de cada convocatória, tem cerca de 50 nomes, que reduz a menos de metade a cada convocatória final. Teve de lidar com a renúncia de João Mário, não gosta de deixar jogadores na bancada e por isso em vez de chamar os 26 permitidos, elege apenas 23 ou 24.
Durante a fase de qualificação para o Euro 2024 utilizou apenas 26 jogadores (menos 12 do que Fernando Santos no apuramento para o Mundial 2022 e com Rúben Dias como único totalista) e estreou apenas dois (Gonçalo Inácio e João Neves). O que indica que tem o grupo feito para o Euro 2024, apesar de repetir que a porta da seleção está aberta, mas que é cada vez mais difícil entrar.
Depois de deixar a seleção belga, após um mau Mundial, em Portugal Martínez não deu espaço para desconfianças e começou a ganhar e com goleadas. Contando com as oito vitórias ao serviço da seleção, já leva 37 partidas em fases de qualificação sem perder. Só lhe falta mesmo um troféu.
isaura.almeida@dn.pt