Katia e José Mário: a política não separa o que o fado une
"Tenho uma tristeza velha. Tão velha que não sei bem...", canta Katia Guerreiro. É um fado menor, este que a fadista grava, a base musical já tão cantada por tantos e há tanto tempo. José Mário Branco ouve, do outro lado vidro do estúdio, junto das mesas de mistura. De pé, atenção toda concentrada, como águia que sobrevoa a presa. Interrompe. Entra em estúdio e põe-se ao piano, num canto. Toca o verso, e insiste na nota que quer que Katia repita no "a" de "velha". O apuro, agora, está no como dizer...
"Tens de ir à tónica. Isto é fundamental." Ela canta: "Tão velha..." Ele toca outra vez. Ela repete. "Tão velhaaaa..." Mas não está contente, o músico, produtor e mestre. "Recolhes outra vez. Percebes?" Ela: "Tenho uma tristeza velhaaaaa", para, sorri: "Já ia subir outra vez." O vício do fado. José Mário não quer que ela grite. Chegam a uma versão que lhe agrada. E ele volta à régie para ouvi-la.
Na régie está Manuela de Freitas, mulher, companheira do trabalho de José Mário Branco. E talvez mais que isso, no que ao fado diz respeito, mas já lá iremos. Sentada, a concentração nela, atriz, é olhos fechados, mãos a apoiar a testa. Não está satisfeita e di-lo.
Gostava de uma interpretação "mais para dentro" neste fado menor, tão tradicional. A letra, dolorosa, fala de uma mulher que tentou lutar contra a sua tristeza, mas já não tem mais forças. Chama-se "Tristeza Velha". A Manuela parece que a forma como Katia a cantar, "para fora", não interpreta a história que o fado conta. Diz da personagem: "Esta mulher não quer que haja ninguém a ouvi-la."
Katia não concorda, porque, diz, essa fase já ela passou, foi quando cantou o fado pela primeira vez, nos ensaios em casa deles. "Não consigo mais cantar assim. Agora já cantei isto para dentro." "Mil vezes", acrescenta José Mário. E do nada serve-se da filósofa judia Anna Harendt, citando: "Não é um perdido, não é um achado, é a condição dela."
Manuela começa a ceder: "Ah, talvez... Desse ponto de vista." José Mário remata: "Esta versão do menor da Katia devia chamar-se pleonasmo. Porque é a dor a falar da dor. A tristeza a falar da tristeza. É ontológico, isto. Não é um estado de alma. É um estado de condição." Ah fado, quem te julgava rasteirinho...
Esta conversa mostra o trabalho que está a ser feito naquele estúdio. Não é só música, nem é só letra, nem só estilo. É a busca da verdade. É fado. Manuela está sempre a repetir a frase, que aqui não soa batida, "não é fadista quem quer...". É esse o trabalho desta dupla. Um trabalho de "filigrana", nas palavras José Mário Branco. "É chupar os ossinhos da codorniz". Letra a letra - não os poemas, mas vogais e consoantes - nota a nota.
O casal não deixa a fadista facilitar, "em exibicionismos". Puxa-a. Contém-na. Às vezes Manuela faz mesmo o gesto com as mãos, punhos cerrados, cotovelos junto ao corpo, como se estivesse a puxá-la para baixo enquanto canta. Ela sabe de letras e de representar. E acrescentou isso ao conhecimento de José Mário sobre música.
"Às vezes eu e a Manuela vamos ouvir fado. E é aquele momento em que o fadista começa mesmo a cantar... dizemos, chegou agora'." Foi por causa de Manuela de Freitas que José Mário Branco voltou a gostar de fado. Nos anos 70, o músico de intervenção não só não gostava de fado como era contra. Contra do ponto de vista ideológico.
Mas Manuela, atriz de Lisboa (ele é do Porto), amava o fado, uma espécie de teatro da música. Ela levou-o a ouvir tudo, enquanto namoravam. Ele, talvez guiado por esse olhar apaixonado, concedeu e entranhou-se no género.
José Mário Branco já levava uma boa bagagem quando Camané lhe pediu para produzir o seu disco Uma Noite de Fado. Manuela fez com ele esse percurso, e são letra dela algumas emblemáticas músicas como A Guerra das Rosas ou Ela Tinha Uma Amiga. E, mais uma vez em busca do que era autêntico, fizeram um regresso às origens que marcou a carreira de Camané e do fado. Com menos gritos, menos artifícios, menos "pós-modernismo" e mais... fado. Mais música. Foi José Mário Branco, por exemplo, que lutou contra a barreira sonora de guitarras e violas que era comum. E também foi ele que introduziu o contrabaixo no género.
Daí a presença de José Mário Branco nesta gravação. Katia Guerreiro sentiu necessidade de "guia". O encontro entre os dois deu-se no filme que Diogo Varela Silva (sobrinho de Amália, neto de Celeste Rodrigues) fez, em, 2016: Katia cantava dois fados, José Mário fazia a produção musical.
Ela adorou a direção dele. Ele terá visto nela qualquer coisa. Mas não foi uma epifania. Era, aliás, um encontro improvável. Ele, confessa, "não gostava de muito do que ela fazia". Ela achava que ele nunca ia aceitar trabalhar com ela, até por motivos políticos - estavam em polos opostos. "Eu achava que o Zé Mário era muito rigoroso nisso."
Mas a política não separou o que o fado havia de unir. Katia fez um telefonema corajoso. José Mário foi frontal. Ela respondeu com humildade - e, talvez, adivinha-se de como ela o conta, lágrimas. Ele foi o que dele se conhece - exigente, duro, cortante.
Conciliação feita, foram alguns meses de partir pedra, escolhendo poemas "sem autor", ensaios na casa de José Mário, com muito fumo e café. E José Mário percebeu que Katia voltava diferente a cada nova sessão. Ia menos alto, sentia mais. Ambos falam de fado da mesma forma.
O estúdio é a ponta final do percurso deste disco que se vai chamar Sempre. A gravação do Tristeza Velha foi uma das mais difíceis. Porque, como explica o produtor, o fado menor é um fado sem melodia, onde cabe tudo ao artista: "Esta música não é nada - portanto é tudo. Foi quase o único caso em que ela cantou comigo a apurar o estilado verso a verso. Não tem mal. Porque é uma construção. É o lado jazz do fado, mudas a melodia consoante a palavra. Temos de procurar adequação e variedade de estilado." Na guitarra, João Mário Veiga e Pedro Castro.
Partem do geral para o particular. Preocupam-se com um poema que é preciso compreender, porque sem isso nada sai bem. "Há aqui uma entrada de cena da conversa, tens de ser mais à bruta," aconselha José Mário. "Não te sentes em palavra nenhuma", insiste ele. Ou ainda: "Dá-lhe 37% de sorriso, por favor." Ou: "A base está feita, a atitude geral está lá e a prova é que já não estás a semitonar como estavas." Frases ditas do caçador de pormenores, palavras do produtor que é mais do que isso. Do mestre.
A fadista grava verso a verso, às vezes apenas para mudar a forma como diz o final de uma palavra. Muda a prosódia, ou seja a acentuação, muda o estilado, a forma como canta. Muda, até, a pronúncia de uma vogal, ela que nasceu na África do Sul e viveu a juventude nos Açores. Demoram-se num "não"...
Não gosto da acentuação desses nãos", diz Manuela a quem irrita que os fadistas digam todos uma "liberdade como se fosse liberdede". José Mário aconselha sobre um "a" em "voar", "muda pouco, mas muda tudo." Insiste: "Este 'a' de voar é importante, estás a abrir para o espaço, atira-te e voa." Incita: "Isso, muito bem!" E anima com frases doidas: "Diz gaivota sem próteses."
Este é o "apuramento emocional", última fase do "método José Mário Branco", o que ele foi desenvolvendo ao longo de anos, tentando objetivar o que é tão pessoal na música. São quatro folhas A4, tabelas divididas em "bases musicais", "apuramento emocional", "edição e montagem".
E a última, mais importante, em que se analisa, música a música, as vogais, a atitude, a voz/respiração, divisão e estilados, e... vazios. Silêncios? "Não, vazio de vazio, de falta de sentimento." O que esta coluna na tabela de avaliação deve dar arrepios a quem canta sob a sua batuta, a quem ousa aventurar-se sob o seu juízo. E, depois disso, o contrário, a obra comum com um mestre.