Como Dalí se tornou surrealista (contado por ele em cartas inéditas)

As contradições do jovem artista são visíveis nas cartas trocadas entre o futuro mestre surrealista e o crítico de arte Sebastià Gasch, até agora apenas publicadas de forma fragmentária
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Os herdeiros de um dos mais importantes críticos de arte do século XX, o espanhol Sebastià Gasch (1897-1982), chegaram a acordo com a Biblioteca Nacional da Catalunha para a doação do seu espólio.

Em breve será possível consultar milhares de cartas e material gráfico em cujos remetentes se conta Salvador Dalí, Joan Miró, René Clair, Tàpies, Cela ou Garcia Lorca. Os bibliotecários estarão neste momento a inventariar aquele arquivo, conta o El País, jornal a que o filho do barcelonense Gasch, Emili, permitiu o acesso a um dos tesouros do crítico de arte: mais de cem cartas enviadas por Dalí que até hoje só foram divulgadas de modo fragmentário, ao contrário da correspondência com Miró e Lorca, já publicada.

A correspondência entre o crítico e o então jovem mas futuro mestre do surrealismo começou com uma carta de Dalí a agradecer um artigo em que Gasch elogiava uma das suas obras. Aproveitava então para lhe dar conta do horror que lhe causava o termo "artístico", essa "palavra horrível que só serve para indicar as coisas que carecem de arte em absoluto", e a afeição ao "antiartístico".

Estiveram juntos na revista L'Amic des Arts, que destoava do panorama artístico conservador, e na autoria do Manifest groc (1928), também com o crítico literário Lluís Montanyà, documento fundamental do universo avant garde catalão da época. Na correspondência entre os dois, o artista dá conta da atração por André Breton e pelas suas ideias surrealistas, ao mesmo tempo que tenta camuflar essa atração, e passa de criticar o surrealismo para aderir a ele, em "contradições do ainda imaturo Dalí", escreve o jornal espanhol.

Num dos elementos da vasta correspondência, com pistas biográficas para as suas obras, Dalí descreve a Gasch como permanecia "longos momentos diante da tela à espera da imagem do seu subconsciente, muitas vezes memórias da sua infância, para então literalmente traçá-la com a objetividade de um dispositivo fotográfico, para ao mesmo tempo lhe dar-lhe uma sensação de mistério, de enigma perturbador", conta ainda o jornal espanhol.

"O surrealismo é a manifestação mais artística da história, consequentemente é a mais amarga, a mais erótica, a mais descabelada, a mais putrefacta", escreve Dalí em julho de 1927.

A amizade entre os dois acabou quando, depois do sucesso de Un chien andalou (filme realizado por Luis Buñuel, que o escreveu com Dalí), o artista se declarou comunista. Gasch zombaria dele, do seu comunismo e da sua pintura, e Dalí devolver-lhe-ia o trato escrevendo-lhe uma carta onde trocou o habitual "Amic Gasch" (Amigo Gasch) por "Inbècil Gasch" (Imbecil Gasch).

Quanto à totalidade do espólio, diz ao El País o professor universitário Joan Minguet Batllori, da Universidade Autónoma de Barcelona, e maior especialista em Gasch, "é sensacional pela sua amplitude de interesses, não existem apenas cartas de alguns artistas e críticos muito importante da história de arte do século XX. Também há material importantíssimo sobre circo, porque ele foi muito amigo de Charlie Rivel, além de material sobre dança, flamenco, cinema espanhol. Ele foi o grande defensor dos artistas inovadores menos apreciados pelos círculos pós-novecentistas, sobretudo de Miró".

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