Comissão nomeada pelo ministério confirma diagnóstico negro na Saúde Pública

Em fevereiro do ano passado, a ministra nomeou um grupo de peritos para fazer um diagnóstico da área e elaborar uma proposta para a reforma da Saúde Pública. O primeiro relatório está feito e entregue: "Recursos são manifestamente insuficientes para a vigilância epidemiológica e para a resposta a ameaças de âmbito populacional."
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Em setembro de 2016, o Ministério da Saúde publicava um documento sobre o estado da Saúde Pública em Portugal, elaborado pela então Comissão para a Reforma da Saúde Pública Nacional. Neste, os números que sustentavam a realidade estavam longe dos ratios recomendados. O país deveria ter 425 médicos especialistas (ratio para 25 mil habitantes) e tinha 271, deveria ter 407 técnicos ambientais (ratio para 15 mil habitantes) e tinha 303, só a classe de enfermagem correspondia ao exigido 177 profissionais (ratio para 30 mil habitantes).

De lá para cá, "a situação não mudou. Pelo contrário, só agravou", confirmam ao DN fontes do setor. A pandemia da covid-19 é um retrato disso mesmo. "Não podemos esquecer que chegámos a ter mais de 50 mil inquéritos epidemiológicos em aberto por falta de recursos. Foi tempo que se deu a ganhar à pandemia, porque não se quebraram cadeias de transmissão", argumentam as mesmas fontes.

Este diagnóstico, feito pela Comissão para a Elaboração da Proposta de Reforma da Saúde Pública e Sua Implementação, nomeada em fevereiro do ano passado pela ministra Marta Temido, foi entregue ao Ministério da Saúde em dezembro de 2020 e vem confirmar o retrato negro na Saúde Pública que tem vindo a ser denunciado por muitos no último ano: recursos humanos insuficientes, profissionais desanimados, sem incentivos e exaustos. No texto, pode ler-se: "Os rácios preconizados, ao abrigo do decreto-lei nº 81/2009, de 2 de abril (número 3 do artigo 8º), alterado pelo decreto-lei nº 137/2013, de 7 de outubro, para as unidades de saúde pública, são manifestamente insuficientes para a vigilância epidemiológica e para a resposta a ameaças de âmbito populacional - o que foi manifesto no decurso da presente pandemia pelo SARS-CoV-2".

No documento, a que o DN teve acesso, a comissão considerava ainda que tal diagnóstico deveria ser dado a conhecer "junto dos profissionais e serviços alvo do inquérito em que se fundamentou. Trata-se de uma estratégia que se nos afigura essencial a uma reforma transparente, responsável e participativa", concluindo ser "da maior pertinência o reforço da capacidade de vigilância epidemiológica, por parte dos serviços operativos de saúde pública, locais e regionais. A pandemia da covid-19 tornou, por demais, evidente a escassez de recursos na área - essenciais à deteção e à prevenção e controlo de surtos/epidemias".

A comissão defendeu também, após análise às respostas dadas por 788 profissionais da área - entre médicos, enfermeiros, técnicos ambientais, técnicos de saúde, assistentes operacionais, etc, que responderam aos inquéritos lançados em plena pandemia, entre junho e setembro do ano passado, - que este diagnóstico impõe "um cadastro atualizado em relação ao 'quantos somos e onde estamos', que permita a rastreabilidade dos profissionais, em termos de mobilidade interserviços, relativo aos recursos humanos em funções nos serviços de saúde pública e institutos correlatos".

Aliás, desde o início da pandemia que não há números certos sobre o total de profissionais, nomeadamente de médicos, que é a classe com maior carência de recursos nesta área. Os que existem são ainda os dados constantes no relatório de 2016, sendo que muitos dos profissionais já sairam das unidades em que desempenhavam funções, para a reforma ou para outras áreas de trabalho.

Mas não só. O diagnóstico descrito no documento revela ainda que muitos dos profissionais não funcionam em tempo completo, daí a necessidade de no cadastro que vier a ser feito "dever ser contemplada a metodologia ETC (equivalentes a tempo completo), sob pena da sobrestimação dos recursos disponíveis (constatou-se um número significativo de profissionais de Saúde Pública que exercem funções, a tempo não integral, no serviço de colocação)", justifica a comissão.

O relatório sublinha ser imperioso, "no que diz respeito a necessidades estruturais e funcionais, o reforço da capacidade de preparação e resposta nacional, mediante a dotação suficiente, humana e material, dos serviços de saúde pública e da sua capacidade funcional de intervenção junto dos restantes operadores da sociedade (incluindo, além da rede hospitalar, as autarquias, a proteção civil, a segurança social, o setor da educação). Embora, o primeiro objetivo do diagnóstico de situação não fosse "o pretender discutir modelos organizacionais e de cuidados, por extravasar o seu 'mandato'", a comissão considerou ter de reforçar que "a organização e funcionamento dos serviços de saúde pública deverá respeitar as operações essenciais de Saúde Pública da OMS Europa (EPHO), sendo que os recursos afetos devem ser os correspondentes à sua consecução".

De acordo com os dados constantes neste diagnóstico, dos 788 profissionais de saúde pública que responderam aos inquéritos 214 são do sexo masculino, 574 do sexo feminino, sendo a média de idade nos homens de 46,4 anos e nas mulheres de 46,9 - 76% dos que responderam têm idade igual ou superior a 40 anos e 56% entre os 40 e os 59 anos.

Do total, 211 pertenciam à classe médica, 149 especialistas em Saúde Pública, 13 hospitalares, mas com funções nesta área, e 62 médicos internos; 149 eram enfermeiros de saúde pública e saúde comunitária enquanto dos restantes 13% eram assistentes técnicos e 6% assistentes operacionais.

O mesmo inquérito revela que 80,7% do total, 636 profissionais, desempenham funções em unidades de saúde pública, 8,2%, 65, nos departamentos de saúde pública das ARS e 2,5%, 20, na Direção-Geral da Saúde). Havendo ainda 3,8% que identificaram o seu serviço de origem como "cuidados de saúde primários" ou "agrupamento de centros de saúde".

Um dado referido no documento é o de que, "quando inquiridos quanto à identificação do programa ou programas coordenados, apenas 4%, 12 profissionais, indicaram ter nos seus serviços "uma coordenação efetiva de programas, referindo-se os restantes estar ao desempenho de chefias de outra natureza que não programas de saúde pública". Os programas de saúde pública referidos pelos 4% foram: Programa Nacional de Vacinação, Prevenção da Violência em Adultos, Segurança alimentar, Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral, Programa de Saúde Escolar e Comissões da Qualidade e Segurança nos hospitais.

Quanto ao acesso a sistema de informação, só 8% dos profissionais referiram não dispor de acesso nenhum, sendo o programa mais acedido agora o Trace Covid-19, mas uma das críticas feitas pela classe durante este último ano é que não existe sequer um sistema nacional que permita a vigilância e monitorização epidemiológica.

No que toca, à situação laboral dos profissionais, o documento dá conta que 76% estão abrangidos por contrato de trabalho por tempo indeterminado, 14% por contrato individual sem termo, 7% por contrato em termo resolutivo e 2% por outras modalidades. Em relação ao horário de trabalho, 79% dos profissionais disse praticar um horário semanal de 35 horas e 20% de 40 horas. A grande maioria, 83%, referiu exercer em exclusivo funções no seu serviço de colocação.

Quanto às condições de trabalho, recursos humanos e logísticas necessárias para a execução da função, 48% consideraram não terem condições para o desempenho de funções, 3% disseram mesmo não dispor de qualquer condição para esse exercício e 2% disseram que tais condições estavam totalmente preenchidas.

No final, o documento destaca que como principais carências: "A falta de recursos e de profissionais, a (in)disponibilidade de viatura para deslocações em serviço e os sistemas "informáticos" (acesso). Por outro lado, "a ausência de reconhecimento pelas funções que desempenham é um dos aspetos referidos pelos profissionais, juntamente com a ausência de "incentivos".

Depois deste diagnóstico, o DN sabe que a Comissão nomeado pelo ministério está a finalizar o documento para a reforma da Saúde Pública, que deve entregar até ao final deste mês. Ao DN, profissionais do setor referem que o retrato aqui traçado é o resultado da falta de investimento e do esquecimento a que tem estado votada uma área fundamental para a saúde comunitária.

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