Com tanto livro medíodre a ser publicado, o ótimo vem de Afonso Cruz
O novo livro de Afonso Cruz faz o autor entrar definitivamente no pequeníssimo clube dos escritores portugueses da nova geração que podem ostentar esse estatuto e deixar de ser um bom contador de histórias como muitos daqueles que publicam livros em Portugal. Ou seja, Jalan Jalan - Uma Leitura do Mundo concede-lhe um novo lugar na literatura portuguesa deste terceiro milénio, e espera-se que o seu lançamento mesmo junto ao Natal não eclipse um pouco a dedicação que deve ser dada a estas 656 páginas.
Vale a pena dizer que existem poucos escritores portugueses que são eles próprios galáxias literárias. Dos novos, aponta-se Gonçalo M. Tavares. Dos menos novos, há poucos além de António Lobo Antunes. Agora, temos Afonso Cruz definitivamente.
Se já tinha espantado com a engenharia por trás das narrativas, retrospetivamente, Nem todas as Baleias Voam, Flores, Para onde Vão os Guarda-Chuvas, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Os Livros Que Devoraram o Meu Pai, este Jalan Jalan faz lembrar o que disseram sobre José Saramago quando publicou Memorial do Convento - a seguir ao esquerdista Levantados do Chão -, de que estava a alargar a sua base de apoio literário. É isso que a partir de agora sucede com este autor, porque voa além das histórias estranhas e surpreendentes ou divertidas e misteriosas que publicou desde que em 2008 deu início à carreira literária para chegar a um outro universo, o de um confronto pessoal com o mundo. Afonso Cruz passa a ter um mundo próprio com 26 luas a rodar o planeta das suas escritas, tantas como as letras do nosso alfabeto.
Será o seu livro mais autobiográfico, se interessa dizer isto deste volume, porque conta episódios que lhe aconteceram, testemunhou ou sabe que outros viveram. Vamos pôr a situação assim: consegue superar as invenções em que se baseiam os seus romances e destronar as convenções de quem anda a catar histórias pelo mundo. Nem é preciso avançar muito pelo livro para se ser surpreendido, basta o primeiro quinteto de textos. O primeiro, uma história deliciosa de alfândega e freiras; a segunda sobre a desmistificação de uma ida às cataratas do Niágara; a terceira, uma perfeita radiografia do que é a pintura; a quarta, um breve e inopinado comentário, e a quinta, a que explica o título do livro. Se o leitor continuar, encontra na sexta um dos momentos fantasmagóricos mais interessantes do livro. E a partir daí não será capaz de fugir à magia deste livro.
A inclusão de muitas fotografias oferece a prova de que muito dos escritos não são só imaginados ou truncados, bem como uma paginação que permite fluir ao longo de tantas páginas - impressas num papel perfeito para a leitura -, além da correlação com outros textos sugeridos pelo autor no fim de cada capítulo.
Mesmo que Jalan Jalan não seja um romance, torna-se uma das propostas mais interessantes entre os últimos lançamentos de autores portugueses e lê-se como se o fosse. Está na linha das suas enciclopédias, só que em forma de literatura de viagens, repescando o que há de importante no mundo por onde tem andado a promover os seus livros e, percebe-se, a pescar histórias.
Com tanta insignificância a ser publicada em Portugal, esta é uma verdadeira prenda literária. É verdade quando o autor diz que "depois de feita a viagem há o desejo de torná-la partilhável e materializar emoções". Já agora, seria interessante saber-se a verdadeira razão de este livro aparecer e este registo acontecer agora...
Jalan Jalan - Uma Leitura do Mundo
Afonso Cruz
Ed. Companhia das Letras
656 páginas
PVP: 26,90 euros