Colette, uma heroína dos nossos dias

Chega nesta quinta-feira às salas de cinema portuguesas um retrato da escritora francesa, centrado na fase inicial da sua literatura e no primeiro casamento, com Henry Gauthier-Villars. Keira Knightley veste a pele da protagonista.
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Esta é a história da mulher cujos estragos feitos no século XIX merecem o mais vigoroso aplauso nesta era #MeToo. Nasceu Sidonie Gabrielle Colette, numa zona rural francesa, mas foi em Paris que libertou o animal curioso dentro de si. Casou-se aos 20 anos com o escritor e crítico de música fin de siècle Henry Gauthier-Villars, conhecido pelo pseudónimo Willy, e foi por incentivo deste que se iniciou na arte da escrita. Com um pequeno grande senão: ela criava literatura na sombra, a todo o gás, produzindo enormes sucessos, e ele limitava-se a colocar a sua vistosa assinatura masculina nos originais, reduzindo-a à condição de serva artística; o que só era equilibrado pela estranha liberdade sexual do casamento de ambos. Entenda-se: ele dormia com metade de Paris, e ela, dona de um requintado gosto por mulheres, quis seguir-lhe o exemplo. Eis um apetecível universo biográfico para qualquer realizador.

Com tais ingredientes, Colette, filme do inglês Wash Westmoreland, tinha tudo para vingar enquanto objeto subversivo e moderno. Mas, desde a primeira cena de chá com o futuro marido, em casa dos pais dela, até ao grito de independência de Colette perante a prova dos seus manuscritos (quase destinados à fogueira, para se eliminar o rasto da verdadeira autoria), o que parece importar mais é a mudança de corte de cabelo da protagonista... Para todos os efeitos, trata-se da crónica de uma metamorfose - humana, mas sobretudo de estilo. É isso que o realizador de O Meu Nome é Alice traduz aqui em imagens. O modo como a autora de Chéri e Gigi cresceu rapidamente sob influência dos hábitos libertinos do marido, e através das experiências desse circuito descobriu a natureza dos seus próprios impulsos. Se Keira Knightley está à altura desta personagem? Digamos que cumpre os requisitos mas não chega à categoria das grandes interpretações (embora seja provável que consiga a nomeação ao Óscar, até pelo simbolismo do papel). Quanto a Dominic West, na pele de Willy, leva até às últimas consequências o peso do seu bigode burguês...

Retratando esta iniciação na literatura e na vida, o filme enquadra a sôfrega produção dos primeiros trabalhos de Colette, a série Claudine - quando o marido a trancava no quarto para escrever -, no contexto da intimidade conjugal, para depois dar um vislumbre da sua emancipação sexual, nomeadamente com Missy, a aristocrata que vestia fato e gravata. Não demorou muito até que a escritora lhe seguisse também o exemplo.

A verdade é que nada "demora muito" no oportuno filme de Westmoreland, sobre essa heroína perfeita dos nossos tempos. Cada episódio desta fase da vida de Colette é passado como a página de um catálogo de momentos, sem nada se aprofundar nas complexidades da época. É uma questão de aparências. Uma abordagem limpinha, pitoresca, suave e ligeiramente inspiradora, com música a condizer, que não vai além do propósito de expor um capítulo.

Talvez se possa resumir a pobreza de Colette a um detalhe muito pouco subtil: quando ouvimos Keira Knightley pronunciar em voz off, e em língua inglesa, as palavras que nascem do ato criativo da protagonista, a mão que as regista no papel, sob o olhar atento da câmara, escreve essas mesmas palavras em francês. Esta dessincronia define bem o filme, a sua tentativa de alcançar um toque french, que se fica por um gesto turístico. Caso para dizer que Colette é uma figura demasiado selvagem para a pena de Westmoreland.

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