Cláudio Martins: "O vinho é o melhor investimento. Se correr mal, pode-se sempre bebê-lo"
Desenhar e rechear uma garrafeira do tamanho de um campo de futebol. O desafio lançado a Cláudio Martins, em Moscovo, talvez tenha sido um dos mais extraordinários de tornar realidade - ainda que 15 milhões de dólares ajudem a começar uma garrafeira com 10 mil garrafas de bebidas espirituosas, a escolha do ambiente e da oferta que correspondessem à excentricidade e à vontade de mostrar do que era capaz ao oligarca russo que o contratara teria as suas idiossincrasias. Mas nos seus 43 anos de vida, metade dos quais dedicados ao melhor mundo do vinho, esse foi apenas um de inúmeros episódios dignos de nota. Como a súbita encomenda de duas caixas de 12 garrafas de Petrus 1982 (num leilão da Sotheby"s, uma garrafa de seis litros foi arrematada por um chinês anónimo por 64 mil euros) para uma festa num iate em Saint-Tropez... no dia seguinte. "Era sexta-feira ao fim do dia e passei a noite ao telefone, mas consegui: meti-me num jato e à hora de almoço do dia seguinte estava a entregar a encomenda. Foi uma adrenalina brutal; e foi giro porque depois convidaram-me para ficar para a festa."
Parece tudo fácil na naturalidade com que o wine advisor conta história atrás de história, poupando palavras que permitam identificar os intervenientes - a discrição é a alma do negócio, sobretudo quando se faz ao mais alto nível -, mas com detalhe suficiente para termos a sensação de estar num universo paralelo. E mesmo que se confesse ainda apaixonado pela sua serra da Estrela e manter entre os programas de eleição "uma míni e uma bifana", Cláudio move-se num mundo de cuja existência muitos chegam a duvidar. E nesse universo, alguém que sabe contar a história de um vinho, explicar como melhorá-lo e casá-lo, mas também as peculiaridades de quem o produz, o nome do cão de guarda da quinta, vale bem mais do que quem simplesmente tem acesso a garrafas extraordinárias com preços a combinar.
Se hoje Cláudio Martins se sente como peixe na água, esteja num palácio em Deli ou numa tasquinha lisboeta, dificilmente o miúdo que cresceu em São Romão e emigrou logo que acabou o liceu - "Os meus pais fariam tudo para me pôr na faculdade, mas eu sabia que seria com sacrifício e preferi sair e ir ganhar o meu dinheiro" - imaginaria fazer vida entre magnatas do petróleo e oligarcas russos, milionários da City londrina e sheiks árabes.
"Fui para Londres com 20 anos porque tinha lá família e era mais fácil adaptar-me - era tímido e bastante novo... só na City aprendi a soltar-me e a falar em público, assim como se faz negócios e investimento. Comecei a lavar pratos num restaurante. E já nessa altura queria ser o melhor - sempre fui supercompetitivo, ficava doido quando estava a dar o litro nos treinos de basquete da escola e os meus amigos andavam ali a passear -, dizia para mim que ia trabalhar para rapidamente chegar a gerente."
Entretanto, foi esquecendo o basquete, mas os traços de persistência, ambição e trabalho duro só se tornaram mais fortes. Isso levou-o ao icónico restaurante Coq D"Argent, onde se cruzou com a importância do vinho e ganhou gosto por saber mais, e eventualmente à liderança da New Street Wine Shop, em plena City londrina. "Aí cruzei-me com clientes mais conhecedores e com maior poder financeiro, fiz amigos e começaram a pedir-me ajuda para fazer umas garrafeiras." O potencial de negócio revelou-se em pleno e empurrou-o a dar o passo lógico, a profissionalização do que já fazia informalmente. No arranque de 2014, estava a inaugurar a Martins Wine Advisor, focado no apoio a privados e empresas de vinho e bebidas, mas também na aquisição de ativos, como vinhos e propriedades.
A vida de luxo que se esconde em cada rolha de uma colheita especialíssima descoberta, apresentada e entregue a quem quer provar algo fora de série ou simplesmente investir - "O vinho é o melhor dos investimentos, porque se correr mal pode-se sempre bebê-lo", brinca -, também tem senãos. Uma década passada entre Londres, Zurique, Moscovo e entre clientes britânicos, dos Emirados Árabes, russos, americanos e de Singapura (nacionalidades que compõem o top de negócios de Cláudio Martins), deixa pouco tempo para a família e os amigos.
"Eu faço questão de provar sempre os vinhos, é isso que me distingue, é a minha paixão e gosto do lifestyle associado a esta vida em que os negócios se fazem sobretudo à mesa do cliente. Mas isso também me afastava da minha filha por semanas... estava sempre a viajar e não conseguia estar com a Maria como queria." Agora com 17 anos, já tem o pai por perto. Depois de um ano em que passou apenas 50 dias em Londres, onde supostamente vivia, Cláudio tomou a decisão de empacotar tudo e voltar a Portugal.
Se tinha de viajar na maior parte do tempo, ao menos quando estava em casa estava verdadeiramente em casa. Instalou-se em Cascais em 2019, também para estar perto do aeroporto, e move-se agora num triângulo em que os outros vértices são Setúbal (onde vive a namorada) e a Comporta, o que lhe permite estar muito mais entre amigos, em boa companhia. Sem descurar de todo a dedicação e a atenção que dá aos clientes - prova disso é a distinção recebida no ano passado, quando a CEO Magazine (publicação inglesa especializada) o considerou o Melhor Serviço do Ano na área de luxury. Acaba também de ser nomeado embaixador do OENO Group (firma inglesa de investimentos financeiros em vinho), com o qual geriu a aquisição de uma garrafa do bordalês Liber Pater (o vinho mais caro do mundo) de 18 litros, de preço estimado em 200 mil euros e cujo comprador não foi revelado. Também lhe cabe negociar outras preciosidades desse patamar de valor, como uma Melchizede (garrafa de 30 litros, equivalente a 40 regulares) de champagne Bollinger.
Quem vê o vinho como negócio - e não tem requinte que acompanhe a fortuna -, muitas vezes subestima ou desaproveita tesouros como estes. Mas Cláudio lida bem com isso. "De vez em quando acontece... A China é uma loucura e o romantismo às vezes perde-se: há clientes que pedem um vinho extraordinário e depois querem misturar com Coca-Cola, que bebem champagne com gelo... Eu tentava convencê-los a não o fazerem, até que me disseram: "É assim que eu gosto e se não queres há mais dez à espera para negociar comigo. Então eu perguntei: "Diet ou normal?""
E quanto ganha a pessoa que faz acontecer estas vendas fora de série? Cláudio explica que neste ramo o valor é determinado pelo tipo de trabalho. "Antes eu ganhava em comissões pelas vendas, um formato que tem margens que variam entre os 10% e os 30%, dependendo do produto que se tem em mãos e do negócio. Mas já passei essa fase. Hoje tenho uma relação de longo prazo com os meus clientes: eles pagam-me um fee e depois vamos andando, seja com um projeto maior ou com a aquisição de uma simples garrafa. O que estão a pagar já não é a simples operação, porque negociar a este nível implica um nível de experiência e uma rede de contactos construída ao longo de anos, solidificada, um acesso que define verdadeiramente o preço."
"Muitas vezes estou em casa e chegam a mandar-me a ementa do restaurante e a ligar-me de Nova Iorque para pedir conselho sobre o que beber para acompanhar o jantar", conta Cláudio. E é claro como água que se há dinheiro a rodos neste negócio, é o lado mais pessoal que verdadeiramente lhe dá gozo. Isso e a possibilidade de fazer a diferença para os vinhos portugueses.
Já com alguns clientes nacionais em carteira, nomeadamente na Comporta, Cláudio acaba de duplicar a equipa e quer chegar a uma dezena de colaboradores diretos neste ano - são estes o ADN da Martins Wine Advisor, por isso são finamente selecionados; o resto do trabalho envolvido, da comunicação ao design, redes sociais, etc., é feito a partir de outsourcing e parcerias. Há uma razão de peso para a multiplicação: "Tenho clientes que querem investir, entusiasmaram-se com o vinho e querem entrar no negócio com um bom retorno, e acho isso ótimo. Mas o meu maior projeto, aquilo que verdadeiramente desejo fazer é pôr os vinhos portugueses neste mapa dos melhores do mundo. E nós temos capacidade, podemos criar fine wines capazes de ombrear com Borgonha ou a Toscana, que facilmente chegam aos 5 mil euros." O que falta? "Que alguém dê o primeiro passo. É preciso ser audaz, não arrogante, mas ter essa vontade e trabalhar para o mérito."
Toda a insistência não chega para lhe arrancar pistas sobre onde estão ou que características têm, mas garante que já identificou dois ou três produtores portugueses capazes de lá chegar - e até antecipa que num par de meses um deles pode ver a luz do dia. "É um projeto giríssimo que nos vai ajudar a ver o que podemos fazer. E eu quero fazer parte disso, estou na idade de puxar o máximo possível pelas minhas capacidades e tenho muita vontade de fazer coisas."
E de facto não tem estado parado - a este nível, nem uma pandemia é capaz de abrandar o ritmo. Ainda há um par de meses começou no imobiliário - nada de comum, veja-se bem que Cláudio não se move no mesmo terreno do que a maioria, simplesmente vê com maior clareza oportunidades e agarra-as e faz acontecer.
"Tinha alguns clientes que começaram a perguntar se os podia ajudar a comprar propriedades em Itália, em França, na Nova Zelândia, que fossem quinta, herdades ou montes com vinha e alguns até com produção e marca afirmada. Decidi então montar esse departamento de wine real estate. É sobretudo um trabalho de boca a boca, mas está a correr bem, com vários projetos em andamento", explica.
Seria numa quinta fantástica e com vista para a vinha que teríamos esta conversa se não estivéssemos confinados? A quinta de Cláudio Martins? "Não, não... eu gostava de ter uma quinta com vinha para me reformar, mas seria para relaxar, não como ganha-pão. Preferia que nos sentássemos numa esplanada gira em Lisboa, no Torel Palace Hotel, na Colina de Santana, que tem um esplanadão!"
E onde o levarão os vinhos a seguir? "Gostava que o negócio entrasse na América do Sul - Brasil, México e Colômbia, que tem imenso potencial. Vou focar-me aí nos próximos dois ou três anos." Para já, a viagem será de férias, para descansar uns dias ao sol, no Funchal. Se a ilha trouxer oportunidades novas, melhor.