Cinemateca "acorda" a memória da obra de Jean Grémillon em ciclo

A programação de fevereiro da Cinemateca dedica uma retrospetiva quase integral a um dos nomes "adormecidos" na história da cinematografia francesa. Este é o mês para se recuperar Jean Grémillon.
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Da mesma geração que o gigante Jean Renoir, composta também por ilustres realizadores como Julien Duvivier, René Clair ou Marcel Carné, Jean Grémillon (1901-1959) é "o outro gigante" dos clássicos franceses. Assim lhe chama a retrospetiva da Cinemateca que arrancou esta semana, inspirada pela frase do historiador e crítico Jean Douchet (que morreu no passado mês de novembro) dita numa entrevista de 2013: "Para nós, era uma evidência que Grémillon foi o maior cineasta francês dos anos 1930-50 a par de Renoir". Quando diz "nós" refere-se ao bando dos Cahiers du Cinéma, publicação de que fez parte e na qual o nome deste cineasta nunca constou entre os elogiados da época - anos 1950 - em que se produziu a análise minuciosa dos valores da cinematografia francesa. Segundo Douchet, esse silêncio não correspondeu a desprezo mas sim a uma não necessidade de defesa imediata: "Ele estava no seu lugar".

Sem embargo, a verdade é que Grémillon acabou por ficar na prateleira da história com uma certa conotação de cineasta maldito, devido a uma carreira bastante atribulada, ferida por projetos não concretizados e uma falta de reconhecimento injustificada, apesar da franca admiração dos seus pares, críticos e historiadores. A própria Cinemateca portuguesa, no rasto dessa estima sublinhada pelo seu cinema, foi apresentando em diversos ciclos ao longo do tempo algumas das suas obras - só quatro tiveram estreia comercial por cá. Assim, a retrospetiva que agora se propõe visa colmatar essa lacuna do conhecimento da obra de Grémillon como um todo (ficando a faltar apenas algumas curtas-metragens e a longa Les pattes de mouche) e reafirmar a importância de o (re)descobrir.

Entre os títulos mais apreciados contam-se o belíssimo Remorques - cuja rodagem começou em 1939, foi interrompida pelo início da Segunda Guerra Mundial e só terminada em 1941 -, uma história de amor protagonizada por Jean Gabin e Michèle Morgan, com uma inesquecível tempestade no mar; Lumière d"Étè (1942), uma tragicomédia nascida da pena de Jacques Prévert; e Le ciel est à vous (1943), um grande filme-espelho da Ocupação, em que a narrativa e ideia da aviação tem um sentido mais profundo do que simplesmente bater um recorde aéreo... Fundamentais também são os seus primeiros filmes sonoros, feitos numa fase de adaptação à nova técnica - La petite Lise (1930) e Daïnah la métisse (1932) - objetos estranhos, fascinantes e, na altura, mal recebidos, e ainda Passou Uma Mulher (1937), igualmente valorizado pela presença de Jean Gabin, aqui num jogo de sedução com Mireille Balin.

Já na segunda-feira há uma sessão composta pelas curtas-metragens Chartres e Maldone, com acompanhamento ao piano por Filipe Raposo, e destacam-se ainda raridades como a opereta Valsa Real (1936), adaptação de um filme alemão, realizada em Berlim quando Grémillon, precisando de um ganha-pão, aceitou um contrato com os estúdios da UFA, ou o melodrama realizado em solo espanhol La dolorosa (1934), outra obra fruto dos seus exílios.

Difícil de definir, até pela diversidade das circunstâncias de produção que marcaram a sua filmografia, pode dizer-se que o cinema de Jean Grémillon revela - na sua expressão mais pura - uma inefável habilidade formal aliada à comoção da realidade contida nos argumentos. O seu toque de artesão, em primeiro lugar, foi o de um compositor da imagem, no verdadeiro sentido musical. Não será por acaso que os bailes e festas se revelam uma marca regular do seu pouco conhecido universo. Aceite-se esta dança.

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