Cinco homens que abalaram a Europa
Estaline nasceu em 1878, Mussolini em 1883, Hitler e Salazar em 1889, Franco em 1892. Catorze anos separam o mais velho do mais novo. Mussolini, o primeiro a tomar o poder, foi nomeado chefe do Governo em Outubro de 1922, depois da marcha sobre Roma; Estaline, em 1929, já mandava em todas as Rússias e pôde expulsar o «renegado Trotsky»; Salazar era ministro das Finanças da Ditadura Nacional em Abril de 1928 e presidente do Conselho em 1932; Hitler foi chanceler do Reich em Janeiro de 1933; e em Outubro de 1936, catorze anos passados sobre a tomada de poder por Mussolini, Francisco Franco é aclamado pelos generais rebeldes chefe da Espanha nacional. Catorze anos, outra vez, entre o primeiro e o último a alcançar o poder.
Mas além desta fútil coincidência cronológica e numerológica, há outras semelhanças e outros paralelos no tempo e no modo destes cinco homens fortes que marcaram a Europa do século xx: todos (à excepção do Duce italiano, que amava e respeitava o pai socialista e a mãe católica) são muito ligados às mães e têm más ou frias relações com os pais; todos, uma vez no poder, tratam, antes de tudo, de controlar o instrumento que os levou ao poder, seja o Partido (Mussolini, Estaline, Hitler), o Exército (Salazar), ou as «forças rebeldes» (Franco).Todos são também grandes leitores, (os que lêem menos são Salazar e Franco) e quase todos cinéfilos.
[artigo:5456057]
São homens sozinhos, secretos, que, mesmo quando têm família, ou amantes, ou amigos, marginalizam ou secundarizam os afectos. Até Mussolini, o mais humano dos cinco, é assim. Todos têm grande desprezo pelos bens materiais, embora não dispensem a pompa e a circunstância da vida pública, da qual cuidam até ao mais ínfimo pormenor. Vivem para o poder e só para o poder, que usam para fins ideológicos, que às vezes se confundem com visões utópicas, precipitando -se em apocalipses wagnerianos, para acabarem em purgas e campos de extermínio ou se perderem nos corredores escuros das prisões e dos degredos. Todos querem dobrar a História; os revolucionários, como Estaline, Mussolini e Hitler, para a fazer avançar para um qualquer admirável mundo novo; os conservadores ou reaccionários, como Salazar e Franco, para a tentar parar ou domesticar.
Há muitas dezenas de biografias destes cinco homens, ainda que algumas digam e repitam o mesmo a partir das mesmas fontes e dos mesmos clichés. O tempo dá-nos agora outra distância e também acesso a diários e a memórias de companheiros de Estaline, achados pelos seus descendentes depois da Perestroika, ou a inéditos do Terceiro Reich, que incessantemente vêm alimentando um incessante fascínio por Hitler. A distância tem também permitido uma revisão histórica de Mussolini e do fascismo, e, em Espanha, a guerra ideológica, entre o fim do franquismo e a lei da memória histórica, trouxe novos dados e outras perspectivas sobre Franco e o seu regime. A curiosidade por Salazar e pelo salazarismo tem também vindo a libertar -se da vigilância antifascista e da paixão que sempre tolda as coisas que nos são mais próximas.
Cruzar as vidas públicas e privadas destas cinco personalidades autoritárias, na grande História e na petite histoire, na sua visão e cegueira, nas suas grandezas e mediocridades, no humor e no horror, no espírito de missão e na ambição, pode ajudar-nos a compreender melhor a sua acção, reacção e relação, aquilo que as distingue e as aproxima, o legado e o rasto que deixaram e a que o tempo que lhes sucedeu também reagiu e ainda reage, demonizando-as ou endeusando-as - e, quase sempre, desumanizando-as. Anexar os dois homens fortes peninsulares - católicos, conservadores, racionais, disciplinados, metódicos - aos demiurgos das revoluções totalitárias do século xx pode também ser útil para desfazer amálgamas e refazer identidades, ajudando -nos a perceber melhor as Europas do presente, as correntes que as vão percorrendo, os fantasmas que as assombram ou os novos e velhos espíritos que as inspiram.
Esta história pode também ler -se como um «guia para perplexos» num tempo de incerteza, de volatilidade e de irremediáveis mudanças na economia, na tecnologia, na política, na sociedade - mas em que a natureza humana, sempre capaz do mais alto e do mais baixo, continua tão imutável como a sucessão dos dias e das noites.
António, o seminarista
De Coimbra, com o seu companheiro do CADC Manuel Gonçalves Cerejeira, seminarista de Braga que não abandonara a carreira sacerdotal, Salazar ia assistindo à violência anticatólica. Frequentava as aulas de História do Direito de Joaquim Pedro Martins, de Princípios do Direito Civil de Guilherme Moreira, de Ciência e Direito Económico de Marnoco e Sousa, de Sociologia e Filosofia do Direito de José Gabriel Pinto Coelho. E escrevia no boletim da Faculdade.
Os anos de Coimbra vão ser para Salazar anos produtivos, a avaliar pelas altas classificações. Acaba a maioria das cadeiras com média de 18 ou 19 valores. Em 1912, no seu terceiro ano, tem 19 em Direito Civil, Direito Administrativo e Direito Penal e 18 em Direito Comercial e em Processo Civil 20.
Paralelamente, colabora no jornal O Imparcial, entre 1912 e 1914, sob o pseudónimo de «Alves da Silva». (..) O perfil ideológico que nos fica é o de um patriota conservador e moderado mas capaz de indignação e até de paixão na defesa das suas convicções religiosas e políticas. Às vezes, permite -se um devaneio literário, romântico até, como num escrito intitulado «Ela», publicado em 18 de Janeiro de 1914 e assinado «S», em vez do crónico «Alves da Silva». É um escrito totalmente diferente de tudo o resto, tanto das crónicas políticas e de costumes como dos textos piedosos e dos versos da primeira juventude:
Chamava-se... Nunca lhe soube o nome. Demasiado pálida talvez, era de uma magreza delicada e fina. Condescendia em sorrir, mas tinha os olhos negros, macios de veludo, a expressão indefinível de uma tristeza profunda.
Segue -se uma longa descrição de uma misteriosa jovem «no amplo terraço que dava para o poente, naquela casa branca que era os meus encantos, erguendo -se sossegada, linda, afogada em roseiras, na exuberância aprazível do pomar». A bela desconhecida é descrita como alguém de outra condição, admirada à distância, na casa nobre que se destaca na paisagem, entre os casebres humildes dos pobres camponeses.
No fim, há uma espécie de desfecho trágico, em que o narrador aparece outra vez, como um mero espectador interessado da tristeza enigmática e solitária: «Disseram -me ao depois que, em vésperas do noivado, repentinamente, a ferira, sem dó, uma grande desgraça...»
Seria esta evocação clássica de uma paixão silenciosa por uma mulher desconhecida de outro meio uma evocação da sua infeliz paixão por Julinha Perestrello, a menina adolescente a quem, em Coimbra, o jovem Salazar dava explicações? Julinha era filha dos Perestrello, os senhores da terra de quem o Sr. António Oliveira pai era feitor. D. Júlia, mãe de Julinha, descobrindo a audácia do filho do feitor, tê-lo-ia fulminado e humilhado com uma duríssima constatação de superioridade social. Mais tarde, dir-se-ia que as razões eram mais fundas, que D. Júlia Etelvina suspeitaria ou saberia que o jovem explicador podia não ser filho do feitor, mas do próprio Dr. Perestrello - e logo, seu meio-irmão e tio direito da pretendida...
Segundo os principais biógrafos de Salazar, a tese não tem consistência, mas, tal como as dúvidas sobre a ascendência de Estaline tinham corrido a Rússia, a história chegaria a correr Portugal.
Nos seus anos de estudante de Coimbra, que coincidem com os primeiros anos da República, desde a proclamação até ao estalar da Grande Guerra, Salazar dá conferências sobre temas religiosos, políticos, sociais e económicos, mostrando já um pensamento e uma ética em formação. Em 8 de Dezembro de 1912, na reabertura do CADC, faz um esboço dos valores que o vão orientar para sempre. O tema é a democracia cristã e os seus princípios «autênticos», nomeadamente quanto à família, que «guarda a sagrada herança dos nossos maiores» e que «existe para os filhos».
Sobre a mulher, Salazar tem um pensamento retrógrado, mesmo para a época. (...) Entrava depois em considerações mais fundas sobre a democracia, que caracterizava como «um movimento de reacção contra uma ordem de coisas fundada no privilégio e na desigualdade», no poderio de outras classes sobre as que, «pela sua ilustração superior» tinham sido, «em outras épocas históricas, as mais competentes para dirigir e para mandar». Entendia que as massas, por reacção aos privilégios das classes tradicionais, procuravam nas modernas democracias, sobretudo nas meridionais, o privilégio do mando para o exercerem em benefício próprio. Assim, as novas oligarquias democráticas actuariam como uma espécie de classes privilegiadas de sentido contrário. Na verdade, «uma verdadeira democracia» devia contar com todos os homens, não permitindo que «ninguém, a partir da sua origem, alta ou baixa, fosse discriminado».
Nessa longa construção doutrinária, Salazar reagia e respondia à discriminação a que a república democrática votara os católicos e os monárquicos: em nome da defesa das instituições praticava-se uma verdadeira lei dos suspeitos. Enquanto Salazar e os seus companheiros da universidade e do CADC - Manuel Gonçalves Cerejeira, Mário de Figueiredo, Pacheco de Amorim, Francisco Veloso - estudavam e pensavam uma resposta defensiva à agressão, a discriminação multiplicava-se em todo o país; depois da Lei de Separação e do corte de relações com a Santa Sé, acabava o ensino religioso nas escolas, expulsavam-se as ordens religiosas, incluindo as congregações missionárias do Império e, em regra, perseguiam-se os católicos, considerados cidadãos de segunda.
O mastermind de toda esta operação era Afonso Costa, o chefe dos democráticos e sem dúvida o mais importante político do novo regime. Educado na matriz voltairiana e positivista e franco-maçon activo, Costa via nos monárquicos inimigos acidentais, em decomposição, cujos manifestos, jornais e tentativas de golpe de Estado ou de insurreição eram facilmente controláveis. O grande inimigo a abater era a Igreja Católica.