Cidade brasileira prova que vacinação em massa pode controlar a pandemia

No âmbito de uma pesquisa, quase toda a população adulta de Serrana foi imunizada. Resultado: queda de 95% nas mortes por covid-19, enquanto as cidades vizinhas sofrem com confinamentos. "Conseguimos proteger até os não vacinados", diz diretor clínico do estudo
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Todas as 34 cidades da região metropolitana de Ribeirão Preto, município de 700 mil habitantes a 300 km de São Paulo, registam colapso nos sistemas de saúde e aumento de casos e de mortes por covid-19. Todas? Não. Serrana, habitada por 45 mil pessoas, resiste ao vírus. A pequena localidade foi escolhida em agosto de 2020 pelo Instituto Butantan, centro brasileiro de pesquisas biológicas, para protagonizar o Projeto S, que analisa o impacto e eficácia da vacinação na redução de casos de coronavírus. Os resultados foram conhecidos nesta semana.

O estudo dividiu 27.160 moradores da cidade (equivalentes a 96% da população adulta) em quatro grupos: verde, amarelo, cinza e azul. Cada um deles recebeu a vacina Coronavac, de origem chinesa mas desenvolvida no Butantan, com uma semana de diferença. Após o último grupo receber a primeira dose, a aplicação da segunda dose no primeiro grupo teve início.

E depois de oito semanas de vacinação em massa da população adulta - 96% dos habitantes - Serrana reduziu em 95% o número de mortes. Nas hospitalizações, a queda foi de 86%. Na de casos sintomáticos, de 80%.

"Mostra claramente que a vacinação tem uma interferência direta no curso da pandemia de covid-19, inclusivamente para as pessoas não vacinadas, porque os dados dizem respeito a toda a população", disse Dimas Covas, o diretor do Instituto Butantan.

Segundo o diretor clínico da pesquisa, Ricardo Palácios, o grupo azul - último a ser imunizado -- já apresentava benefícios mesmo antes de receber a primeira dose. "Mesmo sem completar o esquema vacinal, já tinham um benefício, porque a proteção é dada pelos outros grupos vacinados. A diminuição da transmissibilidade do vírus está referenciada mesmo naqueles que não receberam a primeira dose. No grupo verde [primeiro], o efeito aparece como esperamos, começa a antecipar no amarelo, confirma-se no cinza de forma muito forte e no azul já há esse efeito que coincide com a própria semana de vacinação".

"Conseguimos proteger inclusivamente aqueles que não foram vacinados", acrescentou o pesquisador. Segundo o Butantan, o estudo não indica neste momento a necessidade de vacinar idosos com uma terceira dose, mas sim ampliar o percentual da população imunizada para se chegar a uma proteção coletiva. "É a comunidade que vai nos proteger", sublinhou Palácios.

"O facto de as pessoas da linha verde estarem vacinadas reduz também o número de casos entre aqueles que não foram vacinados. Essa é a evidência dessa proteção indireta que tem sido chamada de imunidade de rebanho, mas eu prefiro utilizar o termo imunidade indireta. Quem recebe a vacina também está ajudando a proteger o outro. Essa é a importância de que quem tem a oportunidade de se vacinar o faça. Não faça só por você, faça pelo outro", explicou Palácios.

"Até agora, nós tínhamos visto a eficácia individual da vacina, a proteção que oferece ao indivíduo vacinado. Com este estudo, podemos ver a proteção coletiva, o seu benefício indireto mesmo para quem não foi imunizado", afirmou Rosana Richtmann, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.

Segundo Dimas Covas, o estudo começou a ser planeado há 10 meses e foi adaptado em relação às clássicas pesquisas de eficiência de uma vacina para incluir a possibilidade de avaliar os efeitos da imunização no controlo da pandemia. "Com isso, gerou-se um enorme conjunto de dados que nos permitem entender a dinâmica da pandemia e as formas efetivas do seu controlo". Foi montado um sistema de acompanhamento epidemiológico e feito um georreferenciamento de todos os casos e internações, informaram os pesquisadores.

A experiência vem sendo descrita como "fundamental", "exemplar" e "histórica" no Brasil e motivou até visitas de delegações estrangeiras, como a do cônsul de Israel Alon Lavi, motivado pela experiência em comum na obtenção proporcional de altas taxas de imunização.

A cidade de Serrana foi escolhida por ter um baixo número populacional, 45.644 habitantes, além de estar próxima a Ribeirão Preto, que é referência nacional tanto em saúde pública quanto privada.

Outro fator que motivou a escolha foi Serrana ter apresentado dados preocupantes de transmissão do vírus num inquérito serológico realizado pelo Instituto Butantan em 2020, que estimou que a cidade tinha 10,6% dos moradores infetados pelo novo coronavírus.

Entre os 30 mil moradores aptos a serem imunizados, 28.380 inscreveram-se, 27.722 receberam a primeira dose da vacina e 27.160 tomaram ambas as doses. A desistência entre a primeira e a segunda dose foi de cerca de 2%, equivalente a 562 pessoas.

A aplicação começou a 17 de fevereiro e estendeu-se até 11 de abril. Os lotes do imunizante foram exclusivos para o estudo e não interferiram na distribuição realizada noutras cidades do Brasil.

O público inscrito, de 28.380 pessoas, equivale a 62,18% dos habitantes. Subtraídas as abstenções, a vacinação em massa alcançou 59,51% dos moradores.

O Brasil tem perto de 17 milhões de casos de covid-19 e soma aproximadamente 470 mil mortes. Entretanto, menos de 11% da população está vacinada.

Entrevista a Léo Capitelli, prefeito de Serrana

O que achou dos resultados do Projeto S?
Foram muito significativos, sentimo-nos muito orgulhosos e felizes de representar a população de Serrana num projeto que é um marco na história da ciência, do enfrentamento à maior pandemia do século, à maior crise sanitária do mundo. Serrana é referência e pode levar agora esperança ao mundo todo com números que podem servir de combate ao covid-19.

Quais os impactos do projeto na reabertura da economia?
Já estamos a funcionar quase em pleno, seguindo, no entanto, as restrições de fluxo e sanitárias do governo estadual. Serrana quer ser conhecida não só como a cidade da vacinação em massa mas também como a cidade da retomada económica, social e educacional consciente, planeada e organizada.

Acha que se o governo federal tivesse comprado as vacinas que lhe foram oferecidas, o Brasil poderia estar perto da situação que Serrana alcançou?
A vacinação do Brasil caminha de forma bastante lenta, é necessário promover políticas públicas para acelerar o processo de imunização. Estamos a torcer para que o Brasil e o mundo tenham acesso o quanto antes à vacinação em massa porque Serrana provou que, alinhando essa vacinação com os protocolos sanitários, podemos vencer a covid-19.

Serrana já foi procurada por outras cidades do Brasil ou até de fora para troca de experiências?
Sim, por prefeitos do estado de São Paulo e de outros estados e por autoridades de outros países, como Israel, para juntos encontrarmos caminhos e soluções para vencer esta guerra.

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