Sou uma pessoa caseira. Sou descendente de produtores de arroz. E às vezes, quero correr." As palavras de Chloé Zhao numa entrevista recente à Vulture dão conta do seu perfeito paradoxo. A realizadora que está a causar sensação nesta temporada de prémios com um filme híbrido que coloca a atriz Frances McDormand dentro da experiência real dos nómadas americanos é, ela própria, um corpo em movimento, apesar de ter assentado bagagem na Califórnia. Aos 38 anos (faz 39 no final do mês) e uma carreira curta, tem chamado a atenção mediática também pela sua origem chinesa, que foi motivo de uma zaragata de redes sociais logo depois de se ter tornado a primeira mulher asiática a vencer um Globo de Ouro na categoria de realização..A saber, os meios de comunicação oficiais chineses, que expressaram o seu orgulho nesta vitória, num piscar de olhos passaram ao repúdio, na sequência de terem sido postas a circular declarações antigas de Zhao que foram interpretadas com a típica rapidez e desambiguação da febre dos comentários online. Numa dessas declarações, à revista Filmmaker, em 2013 - sobre o projeto da sua primeira longa-metragem, Songs My Brothers Thaught Me, centrada num jovem nativo e a sua vontade de deixar a vida numa reserva do Dakota do Sul - afirmou que, para ela, a história do filme "remonta ao tempo em que era uma adolescente na China, sendo um lugar onde há mentiras por toda parte." Perante isto, caíram-lhe em cima os internautas nacionalistas, que a acusaram de atacar o país natal, e a censura chinesa atuou removendo a maioria das referências a Zhao e ao filme na rede social Weibo. Resultado: Nomadland - Sobreviver na América, que já tinha recebido aprovação das autoridades para a estreia na China a 23 de abril, foi retirado do calendário das duas principais plataformas de venda de bilhetes e a coisa parece estar comprometida..Porém, o espírito de Chloé Zhao - que, de resto, não vive muito preocupada com a questão da sua nacionalidade - está longe destas maranhas virtuais. É nas amplas paisagens da América "real", como as que se veem em Nomadland, que a mulher que diz às vezes "querer correr" encontra a sua serenidade. "Ao crescer em Pequim, sempre adorei ir para a Mongólia; da cidade grande para as planícies. Foi essa a minha infância. Já ao passar muito tempo em Nova Iorque, na altura em que tinha 20 anos, estava a sentir-me um pouco perdida. Costumo dizer, a brincar, que, historicamente, quando te sentes perdido, vais para o oeste. E para mim, ir para oeste significa o oeste de Nova Iorque. É uma parte da América sobre a qual acho que não sabia nada. O Dakota do Sul, por exemplo, é principalmente um estado pecuário. A poeira no chão não foi tocada. Parece antigo e estático. E a minha vida tem sido tão transitória e rápida que tenho uma sensação boa quando lá estou, quase como se o tempo parasse", confessou numa conversa com o realizador mexicano Alfonso Cuarón para a revista Interview. Zhao não é, definitivamente, uma realizadora citadina. Os seus filmes até aqui têm revelado uma natural afinidade com o western, embora numa lógica de trabalho muito específica. Já lá iremos..A viver atualmente em Ojai, nas montanhas Topatopa, perto de Los Angeles, com o namorado e diretor de fotografia Joshua James Richards, dois cães e umas quantas galinhas, ela sente que encontrou um lar nos Estados Unidos. Mas, desde que saiu de Pequim aos 14 anos, o percurso para chegar a esse sentimento foi grande..Nascida Zhao Ting, filha de um executivo de uma das maiores empresas siderúrgicas da China (o Grupo Shougang), e com a mãe a trabalhar num hospital, Chloé assistiu ao divórcio dos progenitores quando era ainda uma criança. O pai casou depois com uma famosa atriz de comédia, Song Dandan - que até há não muito tempo era quase a única razão pela qual os conterrâneos conheciam o seu nome, enquanto "enteada de Song Dandan" -, e ela acabou por ser deixada um pouco por sua conta, ao sabor dos mangas e dos filmes de Wong Kar-wai, até seguir para um internato no Reino Unido, com um inglês incipiente..De Inglaterra partiu para Los Angeles, para terminar o secundário numa escola pública, e aí começou a viver sozinha num estúdio no bairro de Koreatown, onde a sua visão romantizada da América teve um volte-face: aquela velha descoberta de que a vida não é como nos filmes....Com o intuito de aprofundar o escasso conhecimento que tinha do país, a sua primeira escolha em termos de formação académica concretizou-se nas ciências políticas. Algo que não foi além de quatro anos e, após uns biscates que implicavam contacto com o público, se converteu num interesse maior nas pessoas - afinal, o retrato do país está nelas. Podemos dizer que é dessa curiosidade que nascem os seus filmes. Ou, antes deles, o desejo de estudar cinema..Matriculou-se então na escola de cinema da New York University, teve Spike Lee como professor, e foi aí que conheceu o futuro companheiro Richards. Romance e trabalho misturaram-se numa colaboração artística que dura desde a primeira longa-metragem, esse já mencionado Songs My Brothers Taught Me (2015), e, antes de Nomadland, há The Rider (2017) - nenhum teve estreia comercial por cá, embora Nomadland vá quebrar esse ciclo em breve..Na verdade, The Rider, que se centra num jovem cowboy de rodeo a tentar encontrar um novo rumo depois de um acidente quase fatal, é o principal responsável pela existência de Nomadland. Para além da excelente receção crítica que teve, e de integrar a lista anual de favoritos de Barack Obama e outra do coreano Bong Joon-ho, que nomeou Chloé Zhao como uma das realizadoras emergentes que ele acreditava que iriam moldar os próximos 20 anos, despertou em Frances McDormand um instinto de caça-talentos. A atriz andava no meio da azáfama de compromissos de imprensa por causa de Três Cartazes à Beira da Estrada quando aproveitou para ir ver The Rider no Festival de Toronto. E deu-se o caso de identificar na marca de realização de Zhao o que poderia ser o veículo para a adaptação do livro Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, de Jessica Bruder, que ela queria produzir..De que falamos quando falamos de "marca de realização"? Trata-se menos do comportamento da câmara do que da direção de atores... ou ausência dela. Entenda-se: até McDormand ter abordado Zhao para realizar Nomadland, o cinema desta asiática só tinha admitido não-atores. Os filmes foram concebidos a partir das histórias dos seus próprios protagonistas e respetivo mundo envolvente (o rapaz de The Rider esteve mesmo em coma durante uns dias, com a cabeça partida, e Zhao quis filmar o seu regresso à vida no rancho). Ora o filme que agora se constitui como o grande favorito dos Óscares preserva essa forma que Zhao tem de se aproximar da realidade americana, já que todos os nómadas são aqui pessoas reais. Nomadland não é um documentário com uma atriz de Hollywood lá dentro, mas um drama que assenta num método livre de captar o ser humano numa versão ficcional de si mesmo..Um modo de trabalhar, uma filosofia low-budget que, pelo menos em teoria, contrasta estrondosamente com o facto de esta realizadora indie, de momento, estar a acabar um filme da Marvel. Isso mesmo: Zhao assina Eternals, título de uma saga sobre seres imortais, com um elenco que inclui Angelina Jolie, Salma Hayek e Richard Madden, a chegar às salas de cinema em novembro. Blockbuster que será seguido de uma já anunciada abordagem de ficção científica-western do clássico Drácula... No mínimo, é difícil encaixar uma mudança tão radical..O certo é que Chloé Zhao, segundo todos os indicadores, pode muito bem ser a primeira mulher chinesa a vencer a estatueta dourada nas categorias de realização e filme (dê por onde der, já é a primeira nomeada). Uma posição de favoritismo que é sintoma da nova tendência de Hollywood para pôr os olhos nos asiáticos, depois da grande performance de Bong Joon-ho e Parasitas na última edição dos Óscares. Caso para dizer que já lá vai a moda dos mexicanos, assegurada pelo trio Cuarón, Iñárritu e Guillermo del Toro..dnot@dn.pt