Só passou uma semana desde que a proposta de nova Constituição do Chile chegou às mãos do presidente Gabriel Boric e o referendo onde os chilenos decidem se a aprovam, ou não, é só dentro de dois meses. Mas, se o plebiscito fosse hoje, 55,7% dos eleitores diria que "não" ao texto que demorou um ano a escrever e que visa substituir o que ainda remonta aos tempos da ditadura de Augusto Pinochet. O que diz afinal a nova Carta Magna e o que poderá acontecer se não for aprovada?.O processo para reescrever a Constituição foi desencadeado pela onda de protestos de 2019. O que começou como uma manifestação contra o aumento do preço dos transportes públicos, tornou-se num grito de revolta contra as desigualdades sociais no país, causadas pelo modelo económico neoliberal herdado de Pinochet, que favorece a privatização de serviços básicos. Em resposta, foi convocado um referendo para que os chilenos pudessem dizer se queriam ou não um processo constituinte: em outubro de 2020, 78% dos eleitores que votaram (apenas cerca de 50%) disseram que "sim"..O passo seguinte foi a eleição dos 154 membros da assembleia responsável por escrever a nova Constituição: as forças políticas tradicionais de centro-esquerda e de direita acabaram por ficar com uma representação menor do que o esperado, com os independentes a conquistarem um terço dos lugares e a então oposição de esquerda radical a ganhar também destaque - uma mudança que viria a confirmar-se com a eleição em dezembro de 2021 de Gabriel Boric, que tinha sido um dos rostos dos protestos estudantis de há uma década. Durante a redação da nova Constituição, o diálogo não foi fácil, com queixas de polarização de opiniões e dificuldades em encontrar um consenso que garanta o máximo de apoio entre a população. A falta de comunicação sobre o que estava a ser feito também gerou problemas..No final, o que foi aprovado é um texto progressista. No primeiro dos 388 artigos, lê-se que "o Chile é um Estado social e democrático de Direito", com a obrigação de fornecer bens e serviços para garantir os direitos básicos dos cidadãos - com a criação de sistemas nacionais públicos de saúde, educação e segurança social, mas também ao trabalho e à habitação dignos, à alimentação e a uma "remuneração equitativa, justa e suficiente"..O Estado chileno surge ainda como sendo "plurinacional, intercultural, regional e ecológico". Numa tentativa de abordar as desigualdades históricas, são reconhecidos 11 povos indígenas, abrindo a porta à constituição de autonomias regionais indígenas, mas fechando-a a qualquer autonomia. Quanto às questões ecológicas, estabelece-se o "direito humano à água", que não pode ser apropriada (atualmente é vista como propriedade privada). Além disso, diz-se que "a natureza tem direitos", tendo o Estado e a sociedade o dever de "protege-los e respeitá-los"..O Chile é ainda apresentado como uma "república solidária", com uma democracia "inclusiva e paritária" - defendendo que as mulheres têm de ocupar, pelo menos, 50% de todos os órgãos do Estado..O texto reconhece ainda o direito à interrupção voluntária da gravidez - levando a muita desinformação que corre nas redes sociais de que permitiria o aborto até aos nove meses. Não é estabelecido qualquer prazo, deixando claro que será a lei a "regular o exercício destes direitos". Desde 2017, que o aborto é legal em caso de risco de vida para a mulher, violação ou inviabilidade fetal, tendo o Congresso chumbado no ano passado a despenalização até às 14 semanas..Ainda nas questões políticas, a nova Constituição favorece a descentralização e acaba com o Senado - visto por muitos como elitista e um entrave às reformas -, substituindo-o por uma Câmara das Regiões..A reeleição presidencial, seja em mandatos consecutivos ou não, será permitida uma vez e a idade mínima dos candidatos passa dos atuais 35 para os 30. O direito ao aborto, o caráter plurinacional do Estado e o fim do Senado estão entre os temas que mais polémica e contestação geram..A campanha para o referendo de 4 de setembro, onde o voto é obrigatório, já começou. Boric - que vem do campo da esquerda radical, mas já foi acusado de ter moderado o discurso - enfrenta um enorme desafio para que o texto seja aprovado. Se for rejeitado, então a versão herdada da ditadura de Pinochet continua em vigor, num revés para o presidente, que a 11 de março se tornou no mais jovem a ocupar o cargo (tem 36 anos) e que prometeu uma reforma social e económica completa. Para piorar a situação, a sua popularidade está em queda - é de apenas 33%..Que a oposição de direita ia fazer campanha contra o texto já era conhecido, o problema é que têm também surgido vozes contra à esquerda - um deles o ex-presidente Ricardo Lagos. "O Chile merece uma Constituição que suscite consenso", disse, alegando que nem a atual nem a proposta o garantem..Se ganhar o "sim", Lagos defende que se deve abrir o diálogo para melhorar o texto. Mas se ganhar o "não", é contra rasgar totalmente o documento, alegando que este contem elementos positivos..susana.f.salvador@dn.pt