Chamou "paneleiros" a vizinhos. Justiça obrigou-o a pedir desculpa
"Foi a primeira vez que fiz uma queixa na vida e que vai a tribunal. Há uns anos não teria coragem de ir à polícia fazer queixa e se calhar a polícia ria-se de mim. Mas estamos no século XXI. Não tem cabimento sucederem estas coisas nos tempos atuais, as pessoas têm de ser respeitadas. Estamos num caminho de evolução, não de degradação. E temos de lutar por nós e pelos outros."
A voz é de Francisco José Duarte, 55 anos. A viver com o marido - com quem, depois de 11 anos de coabitação, casou há três anos - num edifício de apartamentos em Leiria, chamou a polícia ao início da tarde de 18 de julho de 2020 devido ao barulho de "música muito alta" que vinha do andar de baixo e que, garante, era uma constante há algum tempo. Quando os agentes da PSP bateram à porta do vizinho, Francisco estava no patamar do prédio a despedir-se de umas amigas. "Ouvi-o perguntar quem chamara a polícia e dizer: "Aqueles paneleiros lá de cima?""
Achou estranho que os agentes não tivessem reagido ao insulto e identificado logo o vizinho. E decidiu apresentar queixa: "Não me sinto um paneleiro. Sinto-me um homem. Esse tipo de insulto sofri muito quando era jovem, quando a mentalidade era muito tacanha. E se acho que as mentalidades ainda não mudaram tanto como deviam, agora sinto que não tenho de suportar estas ofensas. Chega. As pessoas têm de perceber que isto não pode acontecer."
Do acolhimento na esquadra a que se dirigiu, a de Marrazes, não tem nada a reclamar: "Não se pode dizer que não tenham sido prestáveis. Relatámos o que tinha sucedido - pediram-nos o nome do senhor, mas não sabíamos, vivemos numa casa alugada, não conhecemos o nome de todos os vizinhos - e demos a morada. E como indicámos o dia e a hora a que chamámos a polícia identificaram quem foram os agentes que lá estiveram; nomeámo-los como testemunhas, assim como às minhas duas amigas que ouviram tudo."
O processo avançou, sendo qualificado como respeitante a crime de injúrias (tipificado no artigo 181º do Código Penal, com pena de prisão até três meses ou multa até 120 dias). Estando prevista, para este crime, a possibilidade de "dispensa de pena" (artigo 186º do CP), quando o autor "der em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa de que foi acusado, se o ofendido, quem o represente ou integre a sua vontade como titular do direito de queixa ou de acusação particular, os aceitar como satisfatórios", o Ministério Público (MP) propôs, em outubro de 2021, a suspensão provisória do processo. Desde que, estabelecia o documento enviado às partes, fosse efetuada a "prestação de satisfação moral adequada, vulgo pedido de desculpas, pelo arguido aos ofendidos", e "entregue a quantia de 200 euros a instituição de solidariedade social - a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (...) ou, em alternativa, a prestação de 20 horas de serviço de interesse público em instituição beneficiária a indicar". A proposta do MP foi aceite quer pelo arguido quer pelos queixosos.
Destaquedestaque"Há uns anos não teria coragem de ir à polícia fazer queixa e se calhar a polícia ria-se de mim. Mas estamos no século XXI. Não tem cabimento sucederem estas coisas nos tempos atuais, as pessoas têm de ser respeitadas. E temos de lutar por nós e pelos outros."
"Concordámos porque o nosso interesse nunca seria pedir uma indemnização", explica Francisco. "A decisão veio ao encontro daquilo que procurávamos: o objetivo era castigar de maneira a que não se repetisse - e não houve mais desse palavreado connosco."
O pedido de desculpa teve lugar 11 de janeiro, nas instalações do Departamento de Investigação e Ação Penal do MP. "Ele pediu para fazer serviço comunitário em vez de pagar os 200 euros", conta Francisco. "Depois começou a tentar arranjar argumentos para o que disse e a procuradora mandou-o calar e dirigir-nos o pedido de desculpas, porque era para isso que ali estava. Ele pediu desculpa mas depois disse que nos tinha chamado aquilo porque se tinha enervado por a polícia lhe ter batido à porta. E no final até nos cumprimentou e disse que nem sabia o que éramos." Uma observação bizarra, comenta Francisco. "Mas não quis entrar em guerras, só acrescentei que somos casados e que isso não me parecia ser surpresa para ele."
Chamar paneleiro não é "injúria por causa da orientação sexual"?
Não é possível saber se situações como a ocorrida com Francisco e o companheiro são alvo de frequente reporte às autoridades. O crime de injúrias não permite uma contabilidade separada, nas estatísticas da justiça, em função da motivação, pelo que insultos relacionados com a discriminação das chamadas categorias suspeitas - aquelas que na Constituição da República são enumeradas, no artigo 13º, que institui o princípio da igualdade, por serem historicamente base de perseguição e discriminação, como é o caso da orientação sexual, assim como do género, "raça", religião, território de origem, etc - não são identificáveis.
Para esse tipo de insulto existe, de resto, o crime de "discriminação e incitamento ao ódio e à violência", previsto no artigo 240º do Código Penal, e que no seu número 2, alínea b, prevê uma pena bem mais pesada - de seis meses a cinco anos - para quem "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica". Este tipo criminal, porém, tem sido pouquíssimo utilizado pela justiça portuguesa e, como se constata, apesar da indesmentível motivação homofóbica do insulto "paneleiro" o MP não optou por classificar a injúria de que Francisco e o marido foram vítimas como "por causa da orientação sexual".
Destaquedestaque"Não me sinto um paneleiro. Sinto-me um homem. Esse tipo de insulto sofri muito quando era jovem, quando a mentalidade era muito tacanha. E se acho que as mentalidades ainda não mudaram tanto como deviam, agora sinto que não tenho de suportar estas ofensas. Chega."
Um facto que Ana Aresta, presidente da associação de defesa dos direitos das pessoas LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero, Queer e intersexo) ILGA Portugal, lamenta: "Seria importante que esse tipo criminal fosse usado nestas situações, porque foi criado para elas."
A observação não impede porém esta ativista de classificar o caso de Francisco como "de sucesso": "É uma boa notícia percebermos que há queixas a serem diretamente feitas às autoridades competentes, porque sabemos que das denúncias que nos chegam enquanto associação só uma pequena parte lhes é reportada."
Em 2019, o último ano para o qual a ILGA tem dados do seu Observatório da Discriminação publicados, foram recebidas 171 denúncias de situações de discriminação, reportadas sobretudo pelas vítimas mas também por testemunhas e outras instâncias. A categoria mais numerosa, correspondente a 45,58% dos casos, é precisamente "insulto ou ameaça, verbal ou escrita". Mas apenas 19,4% do total de denúncias foram comunicados às autoridades, tendo dessas mais de dois terços (77,78%) como destino a polícia.
Já na Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que recebe igualmente queixas relacionadas com orientação sexual, o número é, de acordo com a informação enviada ao DN, residual: apenas 11 desde 2016, ano em que se verificaram quatro, seguindo-se duas em 2018, 2019, e 2021 (iu seja, zero em 2017 e 2020). Em 2022 foi registada uma até agora.
Segundo o relatório de 2019 da ILGA, entre os principais motivos alegados para a não comunicação às autoridades destacam-se "o receio de represálias ou de alguma forma prejudicar a situação da vítima ou de outras pessoas envolvidas (20,65% das respostas)", "o desconhecimento de direitos, procedimentos ou instâncias às quais se pode apresentar denúncias (17,39%)", e a "falta de provas ou algum tipo de elemento que permita apresentar uma denúncia, na perspetiva das vítimas e testemunhas (16,3%)".
A "descrença nas autoridades, por vezes associada ao receio de uma segunda discriminação (10,87%)", é alegada por uma em cada dez pessoas. E há ainda quem entenda que "a denúncia não se justifica, por se tratar de uma ocorrência menor, sem valor" ou quem justifique a inação com "sentimentos de vergonha" ou "não se sentir capaz".
A ILGA, garante Ana Aresta, "tem trabalhado com as autoridades para que as pessoas tenham confiança nos mecanismos de denúncia. A capacitação da polícia e dos atores judiciários para que de facto dominem as especificidades associadas às vivências e à discriminação das pessoas LGBTQI é muito importante para que estas percam o medo de denunciar. O tempo do medo e da vergonha tem de terminar."
O caso de Francisco e marido demonstra, crê Aresta, que "a consciência sobre os direitos humanos está, aos poucos, a chegar a muito mais gente. As pessoas sentem que a igualdade está cada vez mais respaldada nas leis, estão mais conscientes de que têm direito à igualdade, à liberdade e à visibilidade. E para isso foi muito importante o acesso ao casamento."