Chamem Alfred Hitchcock
"Tornámo-nos uma raça de voyeurs", já dizia a sábia Thelma Ritter em Janela Indiscreta (1954) perante um James Stewart de perna engessada e com os binóculos ou a teleobjetiva sempre à mão para espreitar as janelas dos vizinhos. É numa circunstância parecida de confinamento que se encontra Amy Adams em A Mulher à Janela, de Joe Wright, com a diferença essencial de se tratar de alguém com um quadro clínico mais complexo: a protagonista sofre de agorafobia (receio de espaços abertos e lugares públicos) e, apesar de ser psicóloga e conhecer muito bem a sua patologia, não a consegue mitigar nem sair de casa há quase um ano. Coisa distinta da situação de semanas do fotógrafo de Stewart. E, no entanto, o seu pavor da vida lá fora não resiste à curiosidade de espreitar as janelas dos vizinhos em frente, acabados de chegar ao bairro...
As semelhanças de dispositivo entre os dois filmes não são aleatórias. O intermediário é o best-seller de A.J. Finn, publicado em 2018, que já de si surgiu como uma variação literária da obra-prima de Hitchcock. Os direitos foram logo comprados pela Fox 2000 e, depois de muitos impasses, inclusive causados pela pandemia, acabou por ser mesmo a derradeira produção dos estúdios e nem chegar às salas de cinema. Agora na Netflix, A Mulher à Janela aparece como uma versão descompensada do filme de Hitchcock.
Entre películas antigas e vinho tinto, Amy Adams lá vai embelezando o tédio de pijama e roupão, mas à medida que o filme avança e se dá o momento em que ela julga testemunhar um assassinato na janela em frente já não há nada que se salve no tosco carnaval de thriller psicológico montado pelo realizador de Expiação. Na tentativa de baralhar a perceção do espectador pela via de uma linguagem visual claustrofóbica, procede-se ao exagero de tudo o que está ao dispor, desde a banda sonora ao vistoso trabalho de câmara, passando pela interpretação de Adams. Uma pequena desgraça ruidosa que ganharia pontos se simplesmente assumisse um código série B. Assim faz só figura de parente pobre. Muito pobre.
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