"Bem-vindos ao meu palácio", diz Haitham Khatib na sua língua mãe. Não deciframos as palavras mas compreendemos a generosidade do gesto, o convite no olhar deste homem, 46 anos, sírio, filho de pai árabe e mãe curda. Ele continua: "Muita coisa mudou, estou cansado, muito cansado, mas gosto muito, mesmo muito de vos ver aqui." As frases cantam, o corpo dele e os olhos dele continuam a dançar, e só quando Estêvão Antunes, seu espelho, refaz o convite em português, a mágoa encontra a tradução que a festa já tinha. É o início de Passajar, espetáculo criado de raiz para o Festival Todos que pela terceira vez se instala na Colina de Santana, a partir de hoje e até domingo, a iluminar a riqueza das pessoas, dos espaços e das histórias que lhe dão vida, e a olhar para a cidade que a rodeia, convocando-a e às suas diferentes culturas para o encontro, através da experiência artística.."Um mundo de mundos, impedindo muros", resume o programa. Ou uma dança na corda bamba, essa linha suspensa e provisória, do passajar, que a coreógrafa e coprogramadora do festival, Madalena Victorino, atirou a quatro profissionais do espetáculo e a um grupo de pessoas refugiadas em Lisboa, que há dois meses se desconheciam. Agora todos caminham num mar de sapatos sem dono, enquanto Júnior, músico e compositor, toca os acordes de Cheguei para Não Ficar, refrão repetido nas muitas línguas que o elenco congolês, português, sírio e zimbabueano deste espetáculo fala. "Somos um todo. Neste momento não há grupos, há um grupo que nos inclui", diz Estêvão Antunes, que antes de fazer o Conservatório fez duas comissões no Afeganistão enquanto piloto-aviador. Um todo, mesmo se Yahya estende o tapete na direção de Meca nas horas certas, enquanto Khoshnaf dedilha a guitarra.."Esta peça é um mosaico. Tira-se partes pequenas de várias vidas para fazer uma coisa que é diferente destas vidas todas. E o grupo, nós, também somos mosaicos", diz Haitham Khatib, a exceção num elenco que está pela primeira vez do lado de dentro de um espetáculo. "Não sou ator, trabalho com sombras" explica, e poucas vezes realidade e símbolo caberão tão justamente numa síntese. Conta a tradição síria do teatro de sombras com marionetas, explica como a arte que praticava no Teatro Nacional de Damasco, usando as mãos e o corpo, era já contra a convenção. "Depois", diz, contraindo o tempo e tudo o que não cabe aqui, "fui para Aleppo. Foi há dois anos, era o tempo difícil entre os tempos difíceis. Quando vês grandes jardins transformarem-se em grandes cemitérios, quando essas mortes se tornam uma coisa normal, quando as crianças brincam em montes de escombros e encontram partes de corpos e já ninguém se importa, ou chora, ou tem sentimentos em relação a isso, então o sobrevivente também está morto. O coração é uma caixa vazia. Eu mantive o meu espírito a salvo mas paguei um grande preço em dor. É como caminhar descalço sobre bocados de vidro. Tento criar memórias boas para equilibrar estas más memórias e a arte é uma boa terapia. O teatro ajudou-me a reconstruir-me, salvou-me.".Entre os que aqui estão há famílias desaparecidas, relatos que doem só de repetir, um pudor que é preciso vencer. "No início tive receio de perguntar a cada um a sua história mas depois limpei esse tabu, estas pessoas têm uma carga que é importante partilhar. E as histórias começaram a abrir caminho em mim e no trabalho", reflete a coreógrafa Maria Ramos, e Margarida Gonçalves remata: "O nosso livro de pesquisa são estas vidas."."É importante falar do que está a acontecer na Síria e sonhar com o que poderá acontecer, como podemos voltar a viver no nosso país. E esta canção fala disso", explica Mohamed Yahya Dabah, sobre o tema do cantor sírio que ele e Khoshnaf Alosh escolheram rapar em perfeita sincronia. Têm ambos 16 anos feitos em Portugal, conheceram-se aqui, tornaram-se melhor amigos. Khoshnaf está cá há nove meses, ainda a dominar o português e quase a entrar no 10.º ano, ele chegou em 2015, está a preparar a entrada no 11.º ano e o futuro como engenheiro informático. Sobre a peça, diz: "Abrimos a nossa cabeça para entrarem novos significados." Gosta de imaginar que aquele mar de sapatos é um novo chão..Em vésperas da nona edição do Todos, o Palácio Centeno vibra - uma equipa pequena e poderosa trabalha nos bastidores, materiais diversos (copos, cadeiras, livros) são reunidos e preparados, artistas ensaiam. Normalmente encerrado ao público, o n.º1 da Alameda de Santo António dos Capuchos é o epicentro deste festival que trabalha com pessoas de muitos lados do mundo e da vida, durante meses, na tecedura do seu programa..Há obras que também fazem a sua casa aqui: Pangeia, de Tiago Cadete, tem duas centenas de objetos que nos levam pelos Contos de Grimm, como Hansel e Gretel atrás de migalhas. Nos salões do primeiro andar, as fotografias de Luís Pavão, Maurizio Agostinetto, Paolo Longo e Rosa Reis instalam mundos invisíveis, palácios, conventos e hospitais com vidas suspensas, em vias de se tornarem hotéis ou condomínios de luxo. "É o único ano em que não fotografamos pessoas mas lugares, era importante fixar esta memória nesta colina em transformação completa", sublinha Giacomo Scalisi, coprogramador do Todos..O festival que nos faz conhecer lugares onde raramente penetramos e pessoas que raramente visitamos regressa a locais onde foi feliz ao mesmo tempo que experimenta novas direções geográficas e sensíveis: Mónica Calle instala Rifar o Meu Coração na SaunApollo da Rua Luciano Cordeiro (a única sauna mista de Lisboa), enquanto no misterioso Convento da Encarnação o bailarino e coreógrafo António Torres cria Encarnado com Beatriz Dias, João Véstias, Margarida Garcez, Telma Antunes e Susana Vilar e crianças e adolescentes do bairro. Habitantes da colina juntam-se também ao Colectivo Protocole para o espetáculo de novo circo que inventam no antigo quartel da GNR, Monument..Espelhando o bairro, o coração do festival volta a bater no Campo Santana, cenário generoso dos concertos da Orquestra Todos - que convida Aline Frazão - e de Biru&O Bando, e da fisicalidade do pensamento do dueto acrobático Phasmes. O mais rural jardim de Lisboa, com os seus galos, patos e árvores centenárias, acolhe também o banquete-piquenique Walima (que implica reserva) e os seus cinco continentes gastronómicos..As formas de encontro festivas que o Todos propõe não iludem temas ou espaços opressivos, jogam com eles. Talvez a mais literal aplicação deste princípio seja Halka, do Grupo Acrobático de Tânger, que leva a ancestral arte acrobática marroquina ao pátio do antigo Hospital Miguel Bombarda (encerrado há quase uma década) e junta manobras gastronómicas ao novo circo. Ou a recriação de Bacantes - Coda para um catar de restos, da coreógrafa e bailarina Marlene Monteiro Freitas, no Panóptico (ala de segurança máxima) - e a sua outra face performativa, com crianças, no Museu da Dermatologia Portuguesa -, bem como o poderoso (quase) solo O Medo a Caminho, de Rui Catalão e Luís Leonardo Mucauro, no edifício central do antigo hospício..É aí também que Miguel Abreu, Margarida Cardeal e Klemente Tsamba instalam Fragmentos do Fim, espetáculo que é tudo menos branco e preto. "Não há verdades absolutas mas duas pessoas que se encontram expostas a conflitos, por razões exteriores a elas, que por sua vez lhes criam inquietações sobre si próprias", diz Miguel Abreu. "Este festival quer transformar o outro num vizinho, cujo conhecimento nos enriquece, venha ele de onde vier", conclui o também diretor e cocurador do Todos..Os espetáculos são de entrada gratuita (à exceção de Halka) e a maior parte exige levantamento de senha uma hora antes do início, mas alguns aceitam reservas..Veja a programação completa aqui.