CCB exibe filme mítico de James Dean
Neste tempo de pandemia em que o regresso dos espectadores às salas de cinema está pontuado por tanto de desejo como de ansiedade, lembremos uma verdade de La Palice: durante um século os filmes foram "apenas" um fenómeno das salas escuras e dos grandes ecrãs. Saudemos, por isso, o regresso de um clássico absoluto - Rebel Without a Cause / Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray - ao grande auditório do CCB, em mais uma sessão da série "Belém Cinema".
Se há filmes cuja memória se enreda com as convulsões da mitologia, este é, seguramente, um dos mais exemplares. E, antes do mais, por causa de um nome que define um estilo cinematográfico, uma época histórica e um imaginário juvenil: James Dean. A sua presença em Fúria de Viver envolve mesmo uma dimensão trágica registada em todas as histórias de Hollywood: quando o filme se estreou nos EUA, a 26 de outubro de 1955, tinha decorrido menos de um mês sobre o acidente de automóvel em que Dean perdeu a vida - foi a 30 de setembro, contava 24 anos.
Em boa verdade, dos três filmes que definem a carreira de Dean, apenas o primeiro, A Leste do Paraíso, de Elia Kazan, adaptado de John Steinbeck, foi lançado durante a sua vida, em março de 1955; o terceiro, O Gigante, de George Stevens, só chegaria às salas em outubro de 1956.
O "rebelde sem causa" a que se refere o título original começa por ser uma personagem exemplar da galeria de jovens que Nicholas Ray filmou como ninguém. Desde a sua primeira longa-metragem, Filhos da Noite (1948), até We Can"t Go Home Again (1973), o filme experimental que fez com os alunos da Universidade de Binghamton, Nova Iorque, Ray legou-nos uma verdadeira enciclopédia da juventude, especialmente perspicaz na exposição dos conflitos de gerações e suas raízes sociais.
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Ora, justamente, Jim Stark, a personagem interpretada por Dean em Fúria de Viver, emerge como expressão exemplar de toda uma transfiguração social e simbólica da juventude do pós-II Guerra Mundial. As suas atribulações exprimem-se também, inevitavelmente, através de uma interrogação drástica dos comportamentos tradicionais das peças do xadrez familiar. Com o seu lendário blusão vermelho, em pose desafiante mas vulnerável, Dean é esse filho rebelde que, de forma mais ou menos consciente, expõe também o esvaziamento de causas do mundo em que vive.
E se é verdade que a sua relação com Judy - interpretada por outra figura mítica da história do cinema americano, Natalie Wood - é tratada por Ray através de um entendimento do amor e da sexualidade para lá dos cânones clássicos, não é menos verdade que, mais do que um "par romântico", eles se definem a partir da "tribo" a que pertencem. Dito de outro modo: este é também um filme de uma juventude à deriva, crente na possibilidade de encontrar um lugar (afetivo, antes do mais) para elaborar o seu destino.
Na genealogia dos grandes atores do cinema americano, James Dean ficaria, assim, como um dos símbolos fundadores dos valores de representação, na altura emergentes, do Actors Studio - a emoção à flor da pele, o pensamento tratado como a mais pura das emoções. Nesta perspectiva, Fúria de Viver é um título tão importante e definidor como Há Lodo no Cais (1954), com Marlon Brando dirigido por Elia Kazan, ou Marcado pelo Ódio (1956), realização de Robert Wise, decisiva para a afirmação artística de Paul Newman. São genuínas memórias clássicas que podem e devem ser conhecidas através de sessões como esta - grande sala, grande ecrã, grande cinema.
* FÚRIA DE VIVER (1955), de Nicholas Ray - CCB, Lisboa (domigo, 16h00)