Cavaco no recato do convento de onde só saiu sete vezes
Um jantar e um almoço em sua homenagem, três reuniões do Conselho de Estado, uma ida oficial à Madeira e uma presença na celebração da Bolsa do Voluntariado. Resumem-se a estes sete eventos as saídas públicas do ex-Presidente da República, Cavaco Silva, nos oito meses que decorreram desde que deixou Belém. Prometeu "recato" e este continua a fazer lei na sua vida. É no "recato" do seu gabinete de dois pisos, que custou ao erário público meio milhão de euros em obras, no Convento do Sacramento, que estará a escrever o 3º volume da sua autobiografia, que retratará os seus últimos anos na presidência.
Até no sair de cena, o contraste com os seus antecessores, Mário Soares e Jorge Sampaio, é enorme. Sampaio mal teve tempo para se organizar. Menos de dois meses depois de sair da Presidência recebeu um telefonema de Kofi Anan a convidá-lo para enviado especial da ONU. "Estávamos nós a fazer uma reflexão sobre qual poderia ser a intervenção de um ex-Presidente, a curto e médio prazo, principalmente no contexto internacional, quando toca o telefone e era o secretário-geral das Nações Unidas. Nem tinha passado um mês desde que tínhamos deixado Belém", recorda a sua assessora Helena Barroco, que veio da Presidência com Sampaio. Uma leitura rápida na sua agenda desse ano é bem reveladora da "intensidade" das suas atividades. Muitas saídas ao estrangeiro, diversas participações em colóquios e conferências no país em vários continentes, inúmeras reuniões no âmbito do seu novo cargo. "O Dr. Jorge Sampaio sempre entendeu que um ex-Presidente, apesar da reserva, pelo menos nos primeiros tempos, em relação à política interna, tem muitas possibilidades de intervenção externamente", afiança Helena Barroco. "Queria continuar muito ativo e acabou por se proporcionar ao mais alto nível", acrescenta.
Soares ainda conseguiu escapar aos holofotes e gozar umas ansiadas férias, durante um mês, com a sua mulher, Maria Barroso. Mas logo a seguir a atividade foi intensa no lançamento da fundação com o seu nome, inaugurada três meses depois de sair de Belém. "O Dr. Mário Soares fez acreditar que tinha ido de férias para o estrangeiro, mas ficou em Portugal com a mulher. Não queria jornalistas a incomodar", recorda o seu ex-chefe da Casa Civil, Alfredo Barroso. Depois, conta, "dedicou-se à organização e inauguração da Fundação e não teve praticamente intervenções públicas nesses primeiros tempos".
O General Ramalho Eanes foi de todos o que teve uma vida política direta mais ativa. Começou, ainda em Belém, a preparar o Partido Renovador Democrático (PRD). Quando saiu da Presidência, em 1986, o PRD já era o 3º partido mais votado, com 45 deputados. Mas foi sol de pouca dura. Nas eleições seguintes só elegeu sete deputados e Eanes abandonou a liderança.
Do Possolo ao Sacramento
Praticamente todos os dias Cavaco Silva percorre, no seu carro com motorista, os 1100 metros que separam a sua casa, na Travessa do Possolo, do convento, na rua do Sacramento a Alcântara. No seu gabinete tem uma secretária e um assessor. O assessor Ademar Marques, dirigente do PSD de Peniche, remeteu o DN para o site oficial do gabinete (www.gabinetesacramento.pt) a informação sobre as atividades do ex-Presidente. Existem apenas cinco fotos destacadas na sua agenda dos últimos 243 dias. Duas ainda no dia nove de março, em que passou o testemunho a Marcelo Rebelo de Sousa (uma a receber deste o Grande Colar da Ordem da Liberdade e num encontro com o rei D.Felipe VI de Espanha); em abril, a tomar posse como conselheiro de Estado; em maio, a receber Aga Khan; e a última, já em outubro, a dar nota das felicitações a António Guterres, pela sua eleição para secretário-geral da ONU.
"O professor Cavaco Silva está a cumprir o que tinha prometido. Recato e afastamento da vida pública, pelo menos, nestes primeiros meses. Continua, contudo, a seguir atentamente a política nacional, até porque prepara com todo o cuidado as suas intervenções no Conselho de Estado", assinala um ex-colaborador de Belém, que pediu o anonimato. Um outro elemento da sua antiga equipa da Presidência, que pediu igualmente para não ser identificado, confidencia que Cavaco vai "praticamente todos os dias ao gabinete do Sacramento, onde está a escrever a sua autobiografia". Está "rejuvenescido e muito tranquilo, com sentimento de dever cumprido", acrescenta. Momentos de stress? "Um pouco apenas quando surgiu uma notícia, falsa, a dizer que tinha defendido a aplicação de sanções a Portugal, numa reunião do Conselho de Estado", revela ainda este ex-assessor.
Acompanhou na sua casa do Possolo, porque era dia feriado, a escolha de António Guterres para a ONU. Foi dali que escreveu um comunicado a congratular o ex-primeiro ministro e líder socialista.
De política, nestes oito meses, foram telegráficas as intervenções. "Têm sido muito pacatos os meus dias. E vão continuar pacatos", admitiu logo em maio, numa homenagem promovida pelo Instituto Superior Economia e Gestão (ISEG) , na sua primeira aparição pública. Mas quebrou a "licença sabática" e não resistiu a deixar deixar uns recados políticos subtis. "a política económica é demasiado importante para ser deixada aos políticos", sublinhou. "Basta ver o que aconteceu na Grécia", sugeriu. Sem falar de política nacional elogiou o papel dos economistas na governação dos Estados: "no médio prazo, a realidade acaba por se impor e vencer a ideologia", asseverou, tendo sido interpretado como uma referência à solução política de esquerda a que deu posse antes de deixar o cargo.
Homenagem
Em julho, num almoço de homenagem no Hotel Pestana, em Lisboa, organizado pela sua ex-ministra da Saúde Leonor Beleza, estiveram presentes cerca de 80 personalidades, entre as quais Marcelo Rebelo de Sousa. No seu discurso, afirmou que concluiu o seu tempo em Belém "de consciência tranquila", e também que "há muita coisa que não se sabe" porque tomou a "a decisão de manter muita coisa reservada na convicção de que essa era a melhor forma de defender o superior interesse nacional". Marcou aí o tabu que, provavelmente, só será levantado com a publicação do seu livro. O da sua análise à política do momento e, quem sabe, a resposta ao seu ex-braço direito Fernando Lima sobre o controverso caso das escutas em Belém. "Este não é o tempo, como é óbvio, de fazer revelações. É o tempo para eu agradecer àqueles que estiveram ao meu lado nas mais variadas situações e me ajudaram a percorrer este caminho político. Mas esse momento chegará", prometeu.