Cavaco desmente assessor que tinha desmentido ex-presidente

Ex-presidente aponta o dedo ao PS e a Sócrates no caso das "escutas", que aqueceu o verão de 2009. Mas o seu assessor já tinha contado outra versão. Fizemos a leitura comparada
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O caso das "escutas de Belém" foi atirado por Cavaco Silva para o campo da "intriga política", uma "historieta de verão", de quem o tentou meter numa "disputa partidária", mas em setembro passado o homem que foi a sua sombra em São Bento e depois em Belém veio explicar que tinha atuado a mando de Cavaco.

É uma pescadinha de rabo na boca: Fernando Lima, o assessor de imprensa que seria posto na prateleira depois do caso do verão de 2009, reconheceu que Belém foi a fonte da notícia da "vigilância" que colocou a Presidência da República e o PS de José Sócrates em guerra acesa e que levou Cavaco a falar de problemas de segurança nas comunicações dos serviços de Belém.

Com o seu terceiro volume de memórias políticas, Quinta-Feira e Outros Dias, agora lançado, Cavaco Silva regressa ao registo do político que não era político e que quase não lê jornais (e faz gala disso em várias passagens) nem falava com jornalistas, apontando o dedo a "uma intriga política insidiosa, criada e alimentada por setores do PS com a participação ativa de alguns órgãos de comunicação social", que pretendeu envolver o próprio "na campanha eleitoral das eleições legislativas de 27 de setembro".

"Os primeiros passos da intriga, que viria a inundar a comunicação social durante mais de um mês passaram-me despercebidos", escreve o ex-presidente da República. Mas, na última reunião antes das férias com José Sócrates, o primeiro-ministro de então, a 28 de julho, Cavaco ouviu os queixumes do socialista à direita e à esquerda sobre os receios de "uma campanha crispada", e o presidente concluiu: "Fiquei convencido de que o primeiro-ministro e o PS iriam fazer tudo, sem olhar a meios, para ganhar as eleições e para preservar a maioria absoluta no Parlamento", anota agora no seu livro.

A 18 de agosto estalou a polémica com a manchete do jornal Público: "Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo governo." Cavaco classifica o título do texto como "absurdo, reflexo do gosto de alguns jornalistas pela intriga e pela criação de factos políticos, uma historieta de verão para atrair leitores". E acrescenta: "Em três anos e meio de mandato, nunca tinha ouvido falar em suspeitas de a Presidência estar a ser vigiada por quem quer que fosse." Cavaco completa a sua versão dos acontecimentos apontando o dedo ao facto de "setores do PS, em ligação estreita com alguma imprensa, persistirem abusivamente em envolver a [sua] pessoa em manobras de intriga política, tendo-se mesmo ido ao ponto de desenterrar um suposto comportamento duvidoso de um assessor do gabinete" de Sócrates "que integrou a comitiva da visita" que Cavaco tinha feito à Madeira, 17 meses antes, em abril de 2008.

Neste ponto, Fernando Lima é categórico: a fonte dessa notícia foi ele, cumprindo ordens superiores. No livro em que conta os "dez anos em Belém", devidamente chamado de Na Sombra da Presidência, o antigo homem de mão de Cavaco conta a sua versão dos factos: "Quando, num certo dia, dei conta, a um jornalista do Público, da estranheza, na Presidência, sobre a presença de um adjunto do primeiro-ministro na comitiva de Cavaco Silva que se deslocou à Madeira, foi porque recebi uma indicação superior para o fazer." E o assessor de imprensa do presidente da República acrescenta: "Não fiz nada à revelia da minha hierarquia, como nunca o fizera ao longo da minha vida na relação que, por dever das funções, mantinha com a comunicação social."

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Cavaco escreve agora que um presidente da República não deve aceitar dizer "uma palavra que seja sobre uma intriga que o envolva", e que se manteve em silêncio "até ao dia das eleições", mas o próprio alimentaria essa polémica. Ainda antes das eleições, afirmou: "Deixem passar as eleições e tentarei, de forma discreta, obter informação sobre questões de segurança."

Dois dias depois das eleições, Cavaco fez uma comunicação ao país, onde reafirmou que o caso das escutas pretendia "puxar o presidente para a luta político-partidária", e que, em nome de Belém, só ele e os chefes da Casa Civil e Militar podiam falar. Um remoque a Lima. Mas o então presidente alimentou outras suspeitas: "Estará a informação confidencial contida nos computadores da Presidência suficientemente protegida?" E, anunciou Cavaco, que ouviu "entidades com responsabilidades na área da segurança" ficando a saber que "existem vulnerabilidades" nessa segurança e pedindo uma "forma de as reduzir".

Destas vulnerabilidades, nunca mais se ouviu. O presidente alterou o "elenco da Casa Civil", como escreve agora, "não prescindindo, no entanto, da colaboração daquele assessor", no único parágrafo que dedica a Fernando Lima, para além de outra breve referência.

Fernando Lima contou outra história. "Se permaneci em Belém por vontade do presidente, tive a esperança de que o tempo ajudaria a superar a situação em que me encontrava." Enganou-se: "A minha presença silenciosa continuava a ser incómoda." E o seu livro também o foi - Cavaco nunca o comentou.

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