Catherine Deneuve reaparece num drama de muitas emoções
Perante os filmes que tem sido possível descobrir na 74.ª edição de Cannes (a decorrer até dia 17), não será exagero dizer que este tem sido um festival de muitos e bons atores - em particular no interior da produção francesa. Revendo os títulos já mostrados, penso, por exemplo, em Sophie Marceau e André Dusssolier, em Tout S"est Bien Passé, de François Ozon, ou Valeria Bruni Tedeschi e Marina Foïs, em La Fracture, de Catherine Corsini.
Agora é tempo de falarmos de De Son Vivant, de Emmanuelle Bercot, apresentado extraconcurso. Os nomes em destaque são Benoît Magimel e Catherine Deneuve: ele no papel de um professor de arte dramática que, ainda antes dos 40 anos, é atingido por um cancro no pâncreas; ela, a mãe, acompanhando o sofrimento do filho, lidando com o inaceitável.
Não será fácil dar conta da subtil teia emocional de um filme obviamente muito pensado e sentido (a realizadora assina também o argumento, em colaboração com Marcia Romano). Até porque, convém não esquecer, hoje em dia há toda uma mediatização do sofrimento, quotidiana, agressiva e obscena, que vive de grandes "verdades" abstratas, no fundo menosprezando as singularidades de cada ser humano. Bercot consegue colocar em cena o trabalho médico e as convulsões familiares sem nunca desvalorizar tais singularidades.
Verdadeiro "ator de composição", Magimel é admirável, representando um misto de raiva e introspeção, desse modo confirmando também as muitas nuances dos seus recursos - para nos ficarmos por uma referência exemplar da sua filmografia, recordemos o seu confronto com Isabelle Huppert em A Pianista (2001), de Michael Haneke.
Quanto a Deneuve, importa lembrar que foi precisamente durante a rodagem de De Son Vivant, em novembro de 2019, que ela sofreu um acidente vascular que se veio a revelar "muito limitado e reversível", ainda que a rodagem tivesse que ser, naturalmente, interrompida. A sua composição da figura da mãe é tanto mais delicada e comovente quanto, como lhe diz o médico (Gabriel Sara, ele próprio um oncologista em estreia absoluta no cinema), a consciência de estarmos perante um cancro irreversível implica, ou melhor, suscita, a possibilidade de dois processos dramáticos de aceitação: do próprio doente, a quem os médicos não podem esconder a sua crescente fragilidade, e dos seres mais próximos, que, no limite, podem e devem fazer-lhe sentir, nem que seja através de alguns luminosos silêncios, que aceitam a sua morte. Por mais cruel ou incompreensível que tal possa parecer, De Son Vivant é um filme admirável, nada fúnebre, sobre isso mesmo: a aceitação da morte, tema todos os dias minimizado por uma cultura de massas enraizada na satisfação instantânea e virtual.
Também de dores familiares podemos falar a propósito de Flag Day, o novo filme de e com Sean Penn (incluído na competição). Em boa verdade, creio que se trata mesmo daquilo que justifica a designação de projeto familiar. O ator/realizador interpreta a figura verídica de John Vogel, um ladrão de bancos e falsificador de dinheiro: a sua evocação é feita pela filha, Jennifer Vogel, autora de um livro de memórias em que expõe o processo de descoberta das atividades criminosas do pai. Sean Penn entregou o papel de Jennifer à sua própria filha, Dylan Penn. E se Flag Day nasce de um respeitável investimento afetivo face a uma personagem multifacetada (John é um mentiroso compulsivo, amante de Chopin...), o projeto perde-se num formalismo fotográfico e narrativo que, infelizmente, vai esvaziando as suas potencialidades.
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