Catherine Deneuve reaparece num drama de muitas emoções

<em>De Son Vivant</em>, o filme em cuja rodagem, em 2019, Catherine Deneuve sofreu um acidente vascular, foi mostrado extracompetição.
Publicado a
Atualizado a

Perante os filmes que tem sido possível descobrir na 74.ª edição de Cannes (a decorrer até dia 17), não será exagero dizer que este tem sido um festival de muitos e bons atores - em particular no interior da produção francesa. Revendo os títulos já mostrados, penso, por exemplo, em Sophie Marceau e André Dusssolier, em Tout S"est Bien Passé, de François Ozon, ou Valeria Bruni Tedeschi e Marina Foïs, em La Fracture, de Catherine Corsini.

Agora é tempo de falarmos de De Son Vivant, de Emmanuelle Bercot, apresentado extraconcurso. Os nomes em destaque são Benoît Magimel e Catherine Deneuve: ele no papel de um professor de arte dramática que, ainda antes dos 40 anos, é atingido por um cancro no pâncreas; ela, a mãe, acompanhando o sofrimento do filho, lidando com o inaceitável.

Não será fácil dar conta da subtil teia emocional de um filme obviamente muito pensado e sentido (a realizadora assina também o argumento, em colaboração com Marcia Romano). Até porque, convém não esquecer, hoje em dia há toda uma mediatização do sofrimento, quotidiana, agressiva e obscena, que vive de grandes "verdades" abstratas, no fundo menosprezando as singularidades de cada ser humano. Bercot consegue colocar em cena o trabalho médico e as convulsões familiares sem nunca desvalorizar tais singularidades.

Verdadeiro "ator de composição", Magimel é admirável, representando um misto de raiva e introspeção, desse modo confirmando também as muitas nuances dos seus recursos - para nos ficarmos por uma referência exemplar da sua filmografia, recordemos o seu confronto com Isabelle Huppert em A Pianista (2001), de Michael Haneke.

Quanto a Deneuve, importa lembrar que foi precisamente durante a rodagem de De Son Vivant, em novembro de 2019, que ela sofreu um acidente vascular que se veio a revelar "muito limitado e reversível", ainda que a rodagem tivesse que ser, naturalmente, interrompida. A sua composição da figura da mãe é tanto mais delicada e comovente quanto, como lhe diz o médico (Gabriel Sara, ele próprio um oncologista em estreia absoluta no cinema), a consciência de estarmos perante um cancro irreversível implica, ou melhor, suscita, a possibilidade de dois processos dramáticos de aceitação: do próprio doente, a quem os médicos não podem esconder a sua crescente fragilidade, e dos seres mais próximos, que, no limite, podem e devem fazer-lhe sentir, nem que seja através de alguns luminosos silêncios, que aceitam a sua morte. Por mais cruel ou incompreensível que tal possa parecer, De Son Vivant é um filme admirável, nada fúnebre, sobre isso mesmo: a aceitação da morte, tema todos os dias minimizado por uma cultura de massas enraizada na satisfação instantânea e virtual.

Também de dores familiares podemos falar a propósito de Flag Day, o novo filme de e com Sean Penn (incluído na competição). Em boa verdade, creio que se trata mesmo daquilo que justifica a designação de projeto familiar. O ator/realizador interpreta a figura verídica de John Vogel, um ladrão de bancos e falsificador de dinheiro: a sua evocação é feita pela filha, Jennifer Vogel, autora de um livro de memórias em que expõe o processo de descoberta das atividades criminosas do pai. Sean Penn entregou o papel de Jennifer à sua própria filha, Dylan Penn. E se Flag Day nasce de um respeitável investimento afetivo face a uma personagem multifacetada (John é um mentiroso compulsivo, amante de Chopin...), o projeto perde-se num formalismo fotográfico e narrativo que, infelizmente, vai esvaziando as suas potencialidades.

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt