Catarina Martins: "PS quer maioria absoluta e tornou-se desorientado"

O PS regressou às negociações à esquerda na saúde. Este é um dos temas da entrevista DN-TSF em que Catarina Martins, à frente do Bloco de Esquerda há sete anos, fala do futuro da geringonça e o que pode reeditá-la, os novos partidos e desafios. Uma atriz, cofundadora de uma companhia teatral, rendida, nesta fase, à política.
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Neste final de legislatura estão a multiplicar-se os casos em que o PS se vira, digamos assim, contra ou para fora dos seus parceiros de esquerda. A geringonça esgotou-se?
Nós estamos no final de uma legislatura que teve por base acordos que foram sendo cumpridos, que teve avanços significativos, que mudou em muito a forma como é pensada a política hoje em Portugal, que tem também limitações, contradições, que conhecemos. Julgo que neste momento estamos a viver um período talvez de alguma desorientação do Partido Socialista [PS], que passou negociações que estava a fazer à esquerda de determinados dossiês para os negociar à direita. Julgo que esta desorientação do PS terá que ver, talvez, com o seu enorme desejo de uma maioria absoluta...

"Inequívoca".
Absolutamente inequívoca, podemos brincar com as palavras, mas julgo que o que está a acontecer é isso. Ou seja, o PS quer muito uma maioria absoluta e, com isso, tornou-se desorientado na forma como negoceia os vários dossiês. Não é um problema de agora, é um problema que nós já vimos detetando há algum tempo e temos vindo a falar disso. Lembro que há mais ou menos um ano tínhamos um acordo feito sobre a legislação laboral e depois o governo decidiu ir à concertação social e destruir o acordo que tinha feito com a esquerda, para propor uma legislação laboral que, aliás, terá o apoio da direita. Depois, no último Orçamento do Estado, tínhamos um acordo para medidas que eram importantes para combater a especulação imobiliária - porque, como sabem, a habitação é um problema grave no nosso país - e o PS, à última hora, também não quis mais avançar nesse dossiê. Na Lei de Bases da Saúde, andamos há um ano e meio num processo de convergência para uma lei de bases...

E agora o PS cortou novamente com a direita para negociar outra vez à esquerda. O Bloco vai responder como?
O PS, que recusou inicialmente assumir a proposta de João Semedo e António Arnaut, teve já sete propostas de Lei de Bases. Creio que este volta-face confirma uma grande confusão da parte do Partido Socialista, que tem conduzido o processo da Lei de Bases da Saúde entre recuos e ziguezagues. É sabido que o PS, tendo a disponibilidade da esquerda para aprovar uma lei que proteja o SNS público e universal, preferiu virar-se para uma negociação com a direita que votou contra a criação do SNS. Fracassadas estas negociações, é hora de o PS responder ao que nunca respondeu: aceita ou não a proposta do Bloco de Esquerda para adiar a decisão sobre novas PPP e, com isso, aprovar uma lei de bases que dê passos importantes para salvar o SNS? O Bloco, temo-lo dito, nunca votará uma proposta que abra a porta à privatização dos hospitais públicos, mas nunca faltará a uma solução que salve o SNS.

Vamos começar pela espuma e depois vamos entrar nessas questões mais particulares. As farpas de Carlos César, nesta semana, ameaçam um futuro entendimento com o PS? Esta agressividade pode minar o diálogo?
Essas declarações são um pouco o símbolo desta desorientação do PS e eu não tendo a valorizá-las mais do que isso.

Mas o caminho do PS para uma maioria absoluta passa inevitavelmente pelo afastamento da esquerda e daqueles que foram os seus aliados até agora?
Quem decide os resultados eleitorais é quem vai votar. O que eu registo é que o PS tem tido uma enorme vontade de apelar a essa maioria absoluta com um discurso de autossuficiência e de negociação à direita para ocupar também o espaço da direita, digamos assim. Enfim, mas isso é um problema do PS, não tem que ver com o BE que, aliás, mantém a mesma posição de sempre na negociação destes vários dossiês; e tem mantido a mesma vontade de que haja convergências à esquerda para passos concretos na política portuguesa que possam melhorar a vida das pessoas. Nós não recuamos um milímetro na nossa disponibilidade, mas como toda a gente também sabe - e se percebeu nestes quatro anos - nunca abdicamos das questões de princípio.

Isso significa que esta aproximação do PS à direita mais ao centro pode significar o fim de uma nova geringonça antes de ela acontecer? Como é que o BE se vai apresentar a estas eleições - com a possibilidade de haver um entendimento global com o PS ou entendimentos pontuais apenas, como era dantes?
Não podemos repetir o que aconteceu, no sentido em que já foi. Fizemos um acordo numa conjuntura muito particular, com a direita no governo e com uma direita que ganhou eleições e que tinha um programa muito agressivo de privatizações, de cortes nos rendimentos do trabalho que nós travámos com o acordo que fizemos e construímos. Portanto, soluções futuras de governo e de maiorias têm de ter em conta que isto já foi feito e que agora é preciso ir mais longe, fazer o que falta fazer, e há tanto por fazer no nosso país. Sobre as formas como lá se chega... lembro que em 2015 os partidos apresentaram os seus programas, e foram os seus programas que foram votados, e a força dos vários programas determinou os passos que foi possível dar. Ninguém, em 2015, achava possível a solução de maioria parlamentar que se desenhou, e ela foi criada não porque alguém andasse a jogar xadrez, mas sim porque houve resultados eleitorais da força desses programas. Portanto, em 2019 acontecerá exatamente o mesmo - há programas que vão a votos e a força que os programas tiverem vai determinar as maiorias que se constituem.

A questão é saber também se os partidos que constituíram a geringonça ou que fizeram parte dessa solução governativa não ficaram de alguma forma reféns dessa solução.
Acho é que a democracia deixou de ficar refém da alternância e do voto útil entre PS e PSD. Hoje percebe-se em Portugal que a democracia é um campo com muito maior exigência, que não é escolher simplesmente a alternância de programas parecidos, é sim escolher mesmo o que queremos para o país, dar força aos programas em que acreditamos para que eles possam, depois, concretizar-se.

Ainda que isso se traduza depois numa alternância, não entre PS e PSD, mas entre direita e esquerda, como dois blocos?
Tenho alguma dificuldade em definir assim. O PS quando teve maioria absoluta distinguiu-se pouco no programa de governos de direita que também conhecemos. Pense-se, por exemplo, nas privatizações que foram feitas, na precarização que foi incluída no Código do Trabalho e noutras matérias. Aquilo que está em causa são as decisões concretas sobre a vida das pessoas. Temos de debater não só se é o PS ou o PSD a fazer privatizações, mas se está ou não na altura de Portugal retomar o controlo estratégico sobre algumas empresas públicas que foram privatizadas - lembro, por exemplo, os CTT, só para citar uma em que me parece claro o prejuízo público da sua privatização, mas há outras, temos o problema da REN, etc. A discussão política ficou mais exigente porque é sobre programas concretos para o país: o que é que queremos fazer com as empresas que são estratégicas para o país, o que é que queremos fazer no Código do Trabalho, como é que olhamos para as pensões, que escola é que queremos, que saúde é que queremos? É tudo isso que está em debate.

O que está a dizer é que o BE faz bem ao PS. Mas se no dia 6 as pessoas decidirem que o PS fica perto da maioria, ou com maioria...
O BE não se define por contraponto ao PS, nem o BE existe para fazer nada ao PS, são partidos diferentes e têm os seus programas. Agora, o BE luta para que projetos que considera importantes para o país possam ter maiorias e possam concretizar-se. Luta para que o seu programa seja governo, como os outros partidos, e faz as convergências necessárias para passos concretos nessa direção.

Sendo isso mais fácil com o PS do que, em princípio, com o CDS, só para dar dois exemplos.
Claro, até porque as bases dos partidos são muito diferentes e, portanto, as opções são objetivamente diferentes.

É, portanto, um caminho mais simples. Tendo em conta tudo o que temos vindo a falar, pode ou não pode a geringonça ser reanimada e em que moldes, como é que vê essa perspetiva?
Neste momento, temos uma série de dossiês que estamos a acabar de negociar no Parlamento que são muito importantes para determinar a possibilidades de diálogos futuros mas, mais do que isso, para perceber quais são as grandes decisões que ficam penduradas para a próxima legislatura, digamos assim. Estamos a falar de legislação laboral, do Serviço Nacional de Saúde [SNS], de habitação, uma série de temas que, de facto, ou ficam resolvidos ou não ficam. Para que lado ficam resolvidos é um tema. E também perceber o que fica como encargo para a próxima legislatura - e as opções vão ser importantes. É bom concentrarmo-nos nos debates que temos agora e, claro, os partidos políticos apresentarão o seu programa para o país e irão a votos. O BE apresentará o seu programa já a partir do início de julho. Agora, é verdade que a forma como acaba esta legislatura e aquilo que se resolve ou que não se resolve também determina as condições de um futuro governo e, portanto, não podemos hoje antecipar aquilo que só pode ser discutido quando soubermos sobre que base é que estamos a discutir.

As perspetivas não são assim muito animadoras, não é? Nesta semana, o PS negociou com o PSD o aumento do período experimental para os primeiros empregos, há a questão da Lei de Bases da Saúde, tendo as taxas moderadoras sido mais ou menos metidas na gaveta... Ou seja, se tudo continuar como está é possível que a perspetiva de uma geringonça não volte a acontecer?
Como digo, vamos concentrar-nos nos dossiês que temos pela frente. Nas questões laborais, no Código do Trabalho, de facto, a medida que foi negociada para o período experimental entre o PS e o PSD é uma medida muito complicada, porque alarga o período experimental de três para seis meses. No período experimental uma pessoa pode ser despedida sem nenhum motivo e sem acesso a qualquer indemnização pelo tempo que trabalhou. Aquilo que estamos a ver claramente, ainda por cima pelos critérios que se põem para este período experimental alargado, é que vamos poder ter postos de trabalho ocupados permanentemente por pessoas em período experimental que vão rodando e nunca têm indemnização. Mais: como só lá estiveram seis meses, para os devidos efeitos continuam à procura do primeiro emprego e, portanto, sujeitas a novo período experimental. O que o PS está a propor-nos, e agora de acordo com o PSD, é que não só uma empresa possa ocupar um posto de trabalho permanente com sucessivas pessoas a rodar em período experimental, como que o mesmo trabalhador fique na situação de saltitar entre posto de trabalho e posto de trabalho sempre em período experimental sem nunca adquirir direitos básicos do trabalho.

Daí o Tribunal Constitucional?
É um alerta que faz a CGTP, bem, até porque no passado já houve uma tentativa de estender o período experimental que o Tribunal Constitucional impediu, e há juristas de vários quadrantes, não só à esquerda mas também à direita, que têm vindo a alertar para a eventual inconstitucionalidade dessa norma. Como ainda está na especialidade, temos de ver como é que vai até ao fim. Mas não podemos achar isto normal, como não podemos achar normal que se espalhem a vários setores os contratos de muito curta duração, orais. Portanto permite-se todo o tipo de abuso laboral. E nós vivemos num país em que, infelizmente, o abuso patronal é muito mais regra do que gostaríamos, muitas vezes à margem da lei. Ora, se nós não conseguimos sequer ter um sistema que obrigue as empresas a cumprir a lei, a não fazer abuso laboral, vamos ainda por cima, depois, permitir a generalização de contratos orais, que nem escritos são, o que torna o controlo da sua legalidade muito mais difícil? Tudo isto é perigoso. Para que se perceba que esta oposição do BE a determinadas medidas não é nem uma novidade - o PS sabe a posição do BE desde sempre - nem uma espécie de braço-de-ferro sobre o vazio: "Vão negociar com a direita em vez de negociar connosco." Não, tem que ver com medidas concretas sobre a vida das pessoas. Nestes quatro anos aprovámos sempre legislação que é melhor do que a que está em vigor e agora, de repente, no Código do Trabalho, o PS propõe-nos algo que piora o que está em vigor, piora condições concretas.

Não será de alguma forma utópico o pensar em chegar a entendimentos a três meses de um ato eleitoral? Esta é a melhora altura para fazer essas negociações?
Claramente, achamos que não. Aliás, negociámos estes dossiês há já muito tempo. Na verdade, o PS é que adiou. Lembro que o João Semedo e o António Arnaut fizeram uma proposta de Lei de Bases da Saúde e entregaram aos dois partidos em dezembro de 2016, lançaram-na em livro em janeiro de 2017. Portanto, houve um trabalho feito de convergência, de pessoas com responsabilidades nos partidos, para a Lei de Bases da Saúde. Foi crescendo ao longo do tempo e é público há um ano e meio. Os partidos sabiam que estava a ser feito - eu sabia e o António Arnaut comunicou também seguramente ao PS -, sei que os dois partidos sabiam o trabalho que estava a ser feito. Depois disso, não apresentámos imediatamente o projeto feito pelos dois porque não quisemos apropriar-nos de algo que não era do BE, porque foi feito pelo João Semedo e pelo António Arnaut, portanto foi feito por duas pessoas com a importância que é óbvia no BE e no PS. Fizemos um debate sobre o projeto com as pessoas que estão hoje no SNS, uma atualização até a pedido dos próprios autores. Demorámos meses a apresentar o projeto na Assembleia da República e só apresentámos quando percebemos que se não avançasse não iríamos ter tempo já para fazer uma Lei de Bases nesta legislatura. Para dar tempo ao PS, não queríamos nós ficar com uma herança que não é nossa, é um testemunho que nos é passado a nós e ao PS. Só quando nós entregámos o projeto na Assembleia da República, depois de muitas conversas sobre o atraso, é que o PS se comprometeu. Ainda demorou bastante mais tempo e só agora, no fim da legislatura, é que o PS apresentou um projeto, mudou de ministro entretanto, tinha um grupo de trabalho e depois fez as coisas de uma outra forma. Nós aceitámos discutir em cima da proposta de lei do governo em vez de discutirmos em cima da proposta que o BE tinha entregado para permitirmos a convergência, ou seja, demos esse passo. Depois, o PS recuou. Em toda a linha, recuou, houve um imenso ruído sobre isso, falou-se de alguns temas, de outros falou-se menos, mas recuou, e agora, aparentemente, tendo em conta as notícias, está a negociar à direita a Lei de Bases da Saúde.
Tudo isto mostra desorientação, porque há escolhas que são feitas. Como é que o PS percebe à última hora que afinal é com a direita que quer negociar uma Lei da Bases da Saúde, com a direita que foi sempre contra a criação do SNS? Como é que o PS, nesta altura do campeonato, depois de todo o acordo, depois de tudo o que fizemos, depois de todo o trabalho... O trabalho da Lei de Bases da Saúde diz-nos muito, é um trabalho pelo qual temos particular carinho, não só pela sua importância na sociedade, mas porque o SNS está mesmo a precisar de ser salvo; não só por ter sido um trabalho desencadeado pelo João Semedo [e pelo António Arnaut], mas é natural que tenha para nós este carinho especial, mas também porque foi um dos processos em que mais pessoas se envolveram. Ou seja, este foi um processo de debate em que gente que trabalha no SNS se envolveu, gente que constrói o SNS, a chamada sociedade civil - eu não gosto muito deste termo que parece que somos todos militares e não somos -, se envolveu muito e fez muita convergência. Muitas das propostas de convergência a que foi possível chegar entre o PS e o BE foram redações que vieram dessas tantas reuniões de tanta gente que se envolveu muito nesse processo. De repente, o PS diz a toda esta gente - gente de esquerda que não é do BE, que muita dela é do PS, outra não é de nenhum dos partidos, que esteve sempre a desenhar soluções no quadro da convergência à esquerda: afinal nós queremos negociar a Lei de Bases da Saúde com a direita. Isto é uma desorientação que pode ser incómoda para o BE no sentido em que é um processo importante para nós, mas é sobretudo um problema para o país, porque a Lei de Bases da Saúde não é coisa pouca e portanto não deveria estar sujeita a jogos de desorientação.

Mas a verdade é que o BE também não aceitou o projeto que o PS acabou por propor...
Pelo contrário, o BE aceitou integralmente as propostas feitas pela ministra da Saúde, isto é que é bizarro. Não sei se as pessoas já perceberam que o que o BE está a defender no Parlamento é que o PS não destrua as redações propostas pela ministra da Saúde que trabalhou com este largo grupo de pessoas interessadas em salvar o SNS.

A intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa foi condicionante para o PS?
A posição do senhor Presidente da República sobre a Lei de Bases da Saúde é conhecida, como é conhecida a posição do PSD, do campo da direita de onde vem o senhor Presidente da República, que é uma posição que sempre foi um pouco hostil ao SNS.

Eles não diriam tanto, não é?
Mas votaram sempre contra. Bem sei que hoje está um bocadinho na moda dizer que gostamos todos do SNS, mas é preciso ver as votações e perceber que sempre que houve avanços no SNS tiveram os votos contra da direita, não só a sua criação como o seu desenvolvimento ao longo dos tempos. O que teve sempre o voto a favor da direita foi outra coisa, é a consideração que a saúde é um mercado importante que o Estado deve apoiar. Aliás eu reparei que saiu agora um artigo na Visão sobre um debate sobre as questões do país em que uma das maiores responsáveis pelo setor privado da saúde em Portugal diz que o problema da saúde em Portugal é que o Estado é grande de mais. Pensem nos países onde o Estado não é grande na saúde, pensem nos Estados Unidos da América, um país que tem o PIB que tem e onde as pessoas literalmente morrem por falta de acesso aos cuidados de saúde, porque estes estão na mão dos privados. Esta é a visão da direita, sempre foi. O BE está de acordo e toda a gente está de acordo que quando o SNS não dá resposta tem de haver contratualização com privados. Vamos dar um exemplo: a hemodiálise em Portugal - mais de 90% é feita em clínicas privadas, mas alguém quer acabar com o acesso das pessoas à hemodiálise?

Áreas muito específicas onde o Estado não tem capacidade...
Áreas específicas, setores do território, momentos de pico. Há várias razões para o Estado ter de contratualizar com privados, ninguém pôs isso em causa. O problema não é esse. Nós também concordamos que a contratualização com os privados deve ser supletiva. O problema é a forma como concebemos as políticas públicas para a saúde. Ter um SNS forte, público, em todo o país, com a responsabilidade de fazer a promoção da saúde e a proteção e o tratamento na doença e depois quando é preciso contratualiza-se com privados. Os privados têm todo o direito a existir, ninguém quer acabar com o consultório privado do médico, tudo bem. Há uma outra visão que a direita tem que é: há dez mil milhões de euros no Orçamento para a saúde e estes dez mil milhões de euros não devem ser para o SNS, devem ser para o sistema de saúde que é composto por públicos e privados e, portanto, o Estado começa a financiar diretamente os grupos privados de saúde. 40% do orçamento da saúde vai neste momento para os privados. Ainda que me diga que uma parte desta percentagem tem que ver com medicamentos e nós não temos laboratórios, mas mesmo assim...

Para as PPP vai muito pouco, mas depois há uma série de outras valências.
Ou seja, descontando os medicamentos vai 30%. É preciso perceber que o orçamento dos hospitais privados depende 50% do Estado. O orçamento das clínicas de meios de diagnóstico depende 70% do Estado. O que nós dizemos é que não tem sentido, por exemplo, um hospital que tem um laboratório montado fechar o seu laboratório de análises para depois contratualizar com a clínica privada ao lado, em vez de fazer lá as análises.

Depende. E se for mais barato?
Primeiro, não é mais barato. Depois, um utente que entra num hospital tem o direito a fazer lá tudo e não andar de um lado para o outro. O Estado não tem, porque quer financiar o mercado privado da saúde, de obrigar as pessoas a andar de um lado para o outro para fazer a TAC aqui, a análise ali, a consulta não sei de quê não sei onde... É absurdo e não protege as pessoas. Há depois um outro problema: há 30 anos, quando a direita impôs - com os votos contra do PS e da esquerda - uma lei de bases que via a saúde como um mercado que o Estado tinha a obrigação de financiar (está escrito), os privados eram pequenos, mas foram crescendo graças a este financiamento público. O que é que acontece hoje? Temos recursos públicos a serem sangrados pelos privados que não têm de investir, só têm de ficar à espera de ficar com os recursos públicos. Sendo o principal deles e o mais importante os profissionais do SNS que nós formamos, que naturalmente têm um trabalho que deve ser reconhecido com carreiras dignas, seguramente, e que os privados pura e simplesmente vão lá buscar.

Como é que isso se resolve?
Num caminho que nós estávamos a fazer para acabar com a promiscuidade entre o público e o privado. O problema das PPP não é só o custo, é o que permitem ir buscar ao SNS, que é o que está a acontecer neste momento. Resolve-se com mecanismos de dedicação plena ou de exclusividade, se quiserem, dos profissionais do SNS.

Havia essa proposta quando a ministra entrou, aliás fazia parte da lei de bases...
O BE apresentou essa proposta no Parlamento na redação exata da ministra da Saúde.

Então que formatos é que serão possíveis para uma nova solução política porque, segundo os estudos, as sondagens e os indicadores que existem, tudo indica que poderá ser necessária uma nova solução política na próxima legislatura. Será possível, ouvindo o que está a dizer?
Tudo vai depender da força que cada programa tiver e da negociação que for possível fazer para criar maiorias. Como digo, primeiro precisamos de acabar este período em que estamos, acabar esta legislatura, perceber quais são os dossiês que conseguimos fechar, quais é que ficam em aberto, porque vai ser importante perceber isso para o futuro. Por outro lado, é preciso que as pessoas, conhecendo os programas dos partidos, votem. Depois veremos a relação de forças que sai dessa eleição.

Em tempos o BE admitiu a possibilidade de integrar um governo. Essa hipótese está hoje mais afastada para si?
Quando o BE concorre a eleições quer ser governo, como todos os partidos. Seria uma irresponsabilidade concorrer a eleições e não querer ser governo, não estamos a brincar.

Mas admitindo que essa é uma possibilidade difícil e que a solução de governo terá de ser uma solução construída à esquerda, mais uma vez, ou à direita, logo veremos os resultados eleitorais, está ou não mais afastada a possibilidade de assumir enquanto líder do BE que este pode ser uma força de governo?
O BE pode ser governo quando tiver votos suficientes para isso.

Nunca numa solução governativa que implique outras forças políticas como o PCP ou o PS?
O governo pode ser formado por várias forças políticas, mas o BE nunca estará no governo para fazer uma política de outro partido. Ou seja, é preciso força suficiente para que haja um quadro político em que a presença do BE no governo tem sentido e tem força. De uma forma um pouco simplista: nós nunca trocaríamos um lugar no governo por uma política concreta que queremos implementar.

Mário Centeno foi o grande obstáculo a que esta geringonça funcionasse melhor ou mais de acordo com aquilo que o BE esperava dela?
Há duas coisas diferentes, a primeira é reconhecer que quando fizemos o acordo em 2015, se Mário Centeno não tivesse abdicado de boa parte do que estava no seu programa macroeconómico, não teria existido acordo. Lembro que o nosso acordo diz expressamente que não pode haver redução da TSU patronal, porque não queremos descapitalizar a Segurança Social, diz expressamente que as pensões teriam de ser descongeladas, que era uma coisa que o programa macroeconómico de Mário Centeno queria que continuasse congelada, e claramente disse também que não poderia avançar o chamado regime conciliatório de despedimento, que era uma forma de facilitar despedimentos que também fazia parte do núcleo duro das propostas de Mário Centeno. Isto só para citar as três que estão logo no início do acordo, depois há outras. Portanto, se não tivesse havido disponibilidade negocial de Mário Centeno, não teria sido possível. Na verdade, as linhas vermelhas foram contra o programa de Mário Centeno e foi isso que permitiu descongelar as pensões e reforçar os direitos do trabalho.

E o que é que mudou? Foi o facto de o ministro das Finanças ter ido para o Eurogrupo?
Não. Julgo que o ministro Mário Centeno faz aquilo que acredita que deve fazer e que é o governo. Não acho que haja ministros cada um para o seu lado, seguramente o governo tem coesão suficiente para as opções que faz. Há uma divergência grande entre nós, que é sobre a forma de redução do défice. Nenhum de nós quer défice. O défice é um desequilíbrio e nós queremos contas certas. O que acontece é que quando olhamos para os critérios de défice da União Europeia [UE] e decidimos fazer uma redução muito abrupta de défice nesses critérios, podemos estar a fazer uma redução do défice a curto prazo com consequências negativas a longo prazo. Não podemos olhar só para as contas de Bruxelas, temos de olhar para as contas do país como um todo. Trocando por miúdos: se nós para conseguirmos fazer um brilharete de défice para Bruxelas ver deixamos de investir num hospital, numa escola, num tribunal, numa estrada, num território que está a precisar de investimento... bem, podemos nesse ano ter tido um número do défice muito bonito, mas o país fica com um problema, porque a dívida, o défice, aquilo que vai ter de ser gasto naquele hospital, naquela escola, naquela estrada, naquele comboio, está lá, e quanto mais tempo se deteriorar, mais caro vai ficar, e quanto mais pessoas ficarem sem aquele serviço, maior é a nossa dívida interna e menor é a nossa coesão social. Houve um fechamento das possibilidades do investimento do país que é negativo a longo prazo, ainda que possa ter tido ganhos a curto prazo nas geometrias europeias, digamos assim.

Mas o nosso dinheiro fica mais barato, o que também ajuda no resto...
O nosso dinheiro ficou mais barato com a política do Banco Central Europeu [BCE], sejamos claros, e o PS sabe disso e di-lo. Se isso fosse verdade, o nosso dinheiro teria ficado mais barato no tempo do governo PSD-CDS, e não ficou. Na verdade, houve uma alteração na política do BCE, porque senão a nossa dívida continuaria a ter juros a subir. Aliás essa alteração verificou-se ainda durante o anterior governo e é por isso que no final do seu mandato eles fizeram de conta que tinham feito uns brilharetes quando, de facto, não mudou nada em Portugal, o que mudou foi a política do BCE, como vários dirigentes do PS se fartaram de dizer na altura. Sobre isso temos uma grande convergência de análise. O que acontece é que quando o país fica mais frágil, fica mais caro recompor no futuro. Acontece outra coisa também importante que é o quanto é que acreditamos nesta política de recuperação da economia. O BE sempre disse que se recuperássemos salários, pensões, prestações sociais aos mais vulneráveis, a economia iria reagir bem e iria crescer. Portanto, continuamos a acreditar que se tivéssemos investido mais nos serviços públicos e nas infraestruturas que são essenciais à própria economia, a resposta desta iria ser positiva. Assim, iria ser o tipo de investimento que se reproduzia de uma forma muito favorável no futuro, até para o combate do défice, não no curto prazo mas a longo prazo.

Embora a economia tenha crescido porque houve essa dupla valência de conseguir melhorar algumas das coisas que disse, mas simultaneamente manter as contas públicas com alguma sanidade.
A economia melhorou por vários fatores, por fatores europeus, nomeadamente uma nova política do BCE, por uma conjuntura internacional favorável durante uma parte deste mandato em várias matérias, que agora já estão diferentes mas que ajudaram, e também porque a procura interna subiu, ou seja, as pessoas puderam ir comprar o que precisavam e isso faz bem à economia. O que faz mal à economia é uma população pobre que não acede aos bens de que precisa, isso paralisa toda a economia e cria desemprego. Não recuperámos os rendimentos de quem tem muito e de quem põe o dinheiro nos offshores, recuperámos os rendimentos de quem vive com muito pouco, e essas pessoas puderam ir comprar aquilo de que precisam. Dir-me-ão, com toda a razão, que ainda foi pouco, muito pouco, porque em Portugal as pensões continuam a ser baixas de mais e os salários baixos de mais. Muitas pessoas estão a ouvir e a ler e a pensar que as suas vidas continuam muito difíceis. Mas esse alívio que existiu reproduziu-se imediatamente, e quando olhamos para o PIB português percebemos que a recuperação da economia tem essa componente da procura.

É baseada muito no consumo, a crítica é precisamente essa, é que a recuperação económica se baseia no consumo e não na produtividade do país.
Não percebo sequer essa crítica. A direita dizia que ia aparecer um investimento qualquer extraordinário estrangeiro para melhorar a economia e que o consumo não era preciso. O consumo, se for uma pessoa ter casa, transportes e comida em casa, parece-me um consumo bastante necessário e a direita até este consumo básico pôs em causa. Para além disso prometeu um investimento que, esse sim, é que não trouxe nada ao país e só aprofundou a nossa dependência externa quando, por exemplo, vendeu as nossas empresas estratégicas a capital estrangeiro com os recursos da própria companhia. Um dos exemplos mais flagrantes disso foi o negócio da Fidelidade, que foi comprada pela Fosun que logo a seguir tirou da Fidelidade exatamente o mesmo dinheiro que tinha dado para comprar a Fidelidade. Agora a Fidelidade anda a vender a fundos especulativos as casas que tinha e anda a despejar pessoas. Este é o investimento da direita, ou seja, o protótipo de grande economia da direita é isto, é desgraça, só deu desgraça. Quando algo só dá desgraça tem de se pensar noutras formas. O que é que não dá desgraça? É tratar com dignidade quem vive do seu trabalho; é compreender que o emprego, as necessidades básicas do país, dos serviços públicos, são o que faz a nossa economia mais forte. Isto é verdade e é por isso que os excedentes que conseguimos - porque há excedentes neste momento - deviam ter sido reutilizados para investir nos serviços e infraestruturas que estão depauperados e não para fazer brilharetes de défice para Bruxelas.

Sente que há uma animosidade do PS relativamente ao BE que não existe face ao PCP?
Não sei. Tenho alguma dificuldade em compreender algumas declarações e como me parece que não são muito interessantes politicamente, também não tenho perdido muito tempo com elas.

Como é que está o relacionamento com o PCP? Recordo que, por exemplo, nesta semana no Parlamento Europeu, o PCP votou contra a solução Marisa Matias para a presidência do grupo parlamentar europeu. Como é que ficam as relações à esquerda, sobretudo entre o BE e o PCP?
Temos diferenças com o PCP que são conhecidas. Houve aliás bandeiras da legislatura que ficaram pelo caminho porque o PCP não quis fazer maioria. Lembro uma, por exemplo, a despenalização da morte assistida, entre outras. Foi uma pena que não se tenha avançado, mas temos uma enorme convergência com o PCP em muitas matérias. Aliás, provavelmente, se olharmos para os votos, o PCP é aquele partido com que, em matérias essenciais, temos maior convergência. O PCP é muito importante em soluções à esquerda em Portugal, pela nossa parte sabemos dessa importância, achamos que vai continuar a ter um papel fundamental e queremos fazer esse trabalho conjunto.

Então o que é que aconteceu no Parlamento Europeu?
Sobre essa matéria, a Marisa Matias já disse o que havia a dizer.

Disse que não ia dizer nada...
Há um processo de decisão em curso no grupo parlamentar europeu de que fazemos parte com o PCP, o nome da Marisa Matias foi proposto por um outro partido para presidir ao grupo, ela disse que estava disponível, essa solução não alcançou consenso como está nas notícias. Não temos nenhum comentário a fazer e esse debate deve ser dentro do grupo parlamentar europeu e é assim que vai continuar.

Surpreendeu-a o resultado do PAN?
O resultado do PAN mostra que uma força política temática pode ganhar um espaço relevante na política. Veremos agora o que fazem com essa força.

Mas é assim que olha para o PAN, como uma força política temática?
Não sou eu que olho, é o PAN que se afirma. Na verdade, em muitas matérias o PAN abstém-se, não tem ainda posição. Não é um mal em si mesmo, ou seja, há espaço para uma força política temática em Portugal como há noutros países europeus. Em relação aos temas específicos do PAN, assinalo até as convergências que temos tido e gostamos de as ter, e temos trabalhado em conjunto nalguns dossiês, muitos deles são caros ao BE há bastante tempo e é bom que haja mais força para essas matérias, o bem-estar animal entre outras. Há, depois, uma série de áreas em que nós não sabemos o que é que o PAN pensa - educação, saúde, pensões, trabalho -, mas uma vez ganhando força, o PAN terá de definir-se, não é? Portanto, também aguardamos a definição desse caminho que até agora não teve de existir, mas há um momento em que, ganhando mais força, ela terá naturalmente de aparecer.

Pensa que há o risco de que o PAN reúna esse voto de protesto que foi durante muito tempo do BE e que, com a sua institucionalização, pode vir a estar em perigo?
Tenho muita dificuldade com a ideia do protesto e da institucionalização e vou explicar porquê: acho que se diz normalmente que o BE era um partido de protesto e passa a ser um partido institucional para atacar o BE, porque à direita, e no poder económico, é muito interessante que o BE proteste contra o salário mínimo ser baixo.

Não é só à direita. Agora, o Pedro Soares quando anunciou que não iria ser novamente candidato a deputado pelo BE também disse que o BE corria o risco de se institucionalizar.
Ele não disse que o BE estava institucionalizado, registo que não o disse. O que eu queria dizer é que na verdade o que incomoda é eventualmente a força do BE, quando tem força porque há mais gente que confia nele para mudar coisas. O presidente da Altice estava muito incomodado naquela conferência em que também os hospitais privados mostraram o seu incómodo com o BE, porque diz que nós fizemos uma coisa terrível, diz que fizemos uma campanha eleitoral contra a Altice. O que nós fizemos foi dizer que o que a Altice estava a fazer, tanto aos seus trabalhadores como em dossiês essenciais como o SIRESP, era inaceitável em Portugal e combatemos esses abusos. O poder económico não gosta. Eu percebo que o poder económico goste de fazer de conta que quem tem uma posição diferente e quer equilibrar o tabuleiro em nome das pessoas só pode ser protesto, não deve ter força institucional. Porque, na verdade, quando ganhamos força institucional podemos mudar alguma coisa, mas é mesmo preciso mudar muita coisa em Portugal.

O BE está ou não inebriado pelo aroma do poder?
Não sei o que é que isso quer dizer. Se me pergunta se nós achamos que é importante mudar, transformar, criar força para transformar em Portugal, sim. É preciso e temos a força de o fazer. Não queremos ficar sentados em casa a pensar, "isto correu mal e nós tínhamos a boa solução", não. Nós queremos juntar força, juntar gente em nome de soluções concretas para o país. Não quero ficar em casa a dizer que o preço da eletricidade é grande de mais, quero ter força para impor um corte nas rendas da energia.

Nesse sentido, está disponível para fazer pequenas concessões ao PS para ter mais poder de mudar?
O poder de mudar vem de quem vota, vem de quem se organiza, vem de quem se mobiliza; vem não só no dia das eleições, mas de quem faz as lutas todos os dias pelos temas que são importantes, de quem não se conforma, de quem não se resigna. Depois, a relação de forças que existe permite mudanças legislativas que são institucionais, que são importantes, e aí há toda a negociação que deve existir para se irem dando passos no caminho que achamos importante. Mas nunca nos enganemos, a força não vem de uma negociação de gabinete. A força vem de quem não se resigna, seja no voto seja nos ativismos sindicais, pela habitação, pelo ambiente, pelos direitos das mulheres, de toda esta gente que tem vindo a levantar-se porque diz que o país pode fazer melhor. E pode mesmo.

Entrevista realizada na sexta-feira, dia 28, e atualizada depois das declarações do PS e do corte de relações com o PSD na Lei de Bases da Saúde.

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