Casais chineses já podem ter dois filhos. Nestlé sobe na bolsa

Um quarto de século depois acabou política cuja principal consequência foi a assimetria entre sexo masculino e feminino
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A notícia esperada há algum tempo chegou ontem, num comunicado do Partido Comunista Chinês: o país mais populoso do mundo acabou com a legislação de "planeamento familiar", conhecida como "política do filho único", autorizando de forma universal os dois filhos por casal. Uma decisão que, de acordo com especialistas do país, permitirá ampliar até cem milhões de agregados familiares.

Os mercados internacionais parecem acreditar nisso. Ontem, várias empresas ligadas a produtos para a infância - como a Nestlé, a Danone e a Johnsons - registaram grandes subidas em bolsa. A reação poderá ter sido exagerada: o governo chinês já permitia, desde 2013, dois filhos a casais em que um dos progenitores fosse filho único. E até agora, entre 11 milhões de potenciais casais abrangidos, apenas 1,5 milhões se candidataram a essa exceção.

Mas no que toca ao significado histórico, não há dúvidas em relação ao valor do anúncio de ontem.

Para trás fica um quarto de século que marcou o país, com muitas consequências adversas que o então líder Deng Xiaoping não terá antecipado quando implementou a medida, em setembro de 1980.

Pequim estima que nasceram menos 400 milhões de crianças devido à regra. Mas muitos demógrafos dizem que essa teria sido a evolução natural sem necessidade de impor medidas, até porque a taxa de natalidade já estava em declínio - abaixo dos três filhos por casal - à época da decisão.

A imposição do "filho único" nunca foi absoluta, vigorando sobretudo nos centros urbanos. E pro- va disso é o facto de, atualmente, a a taxa de fertilidade estar nos 1,7 por mulher. Um número que, por exemplo, é superior aos 1,3 filhos de Portugal. Nos meios rurais (desde 1984) e entre as minorias étnicas era permitido um segundo filho, ainda que a tolerância nem sempre fosse concedida na prática. Mas a política teve, ainda assim, um impacto dramático na estrutura demográfica do país.

Em 2013, num documento dedicado aos direitos das crianças na China, a UNICEF registou várias evoluções positivas, como a redução (entre 1990 e 2007) de 51% na taxa de mortalidade de crianças até aos 7 anos. Porém, a organização apontou também uma das consequências mais graves das restrições à natalidade: a opção pelos bebés do sexo masculino. "Uma preferência tradicional por rapazes resultou num aumento significativo da discrepância entre sexos desde a década de 1980", diz o relatório. "Dados de 2005 mostram um rácio à nascença de 119 rapazes por cada cem raparigas." O rácio natural é de 105 rapazes por cada cem raparigas.

O receio de que alguns casais, desesperados por terem raparigas, recorressem em massa ao aborto seletivo (legal ou não) e até ao infanticídio, levou as autoridades chinesas a emendarem a lei logo em 1984, permitindo um segundo filho aos casais que tivessem primeiro uma rapariga. Mas a medida foi claramente insuficiente. Estima-se que, ao longo das próximas duas décadas, em boa parte do país, o número de homens jovens supere o das mulheres em 10% a 20%. Existe até uma expressão para designar este excedente masculino, com poucas perspetivas de constituir família: guang gun, ou "ramos despidos".

Ao longo dos anos têm também sido frequentes as denúncias - sobretudo, no passado recente, nas redes sociais - de casos de delegados regionais excessivamente "zelosos", que terão imposto esterilizações e abortos, incluindo em mulheres cuja gravidez estava já num estado avançado.

O impacto destes casos na reputação internacional da China terá contribuído para a mudança de rumo. Mas o principal motivo da decisão ontem anunciada é - paradoxalmente - o mesmo que inspirou a regra do filho único: a necessidade de assegurar um crescimento económico sustentado.

Por comparação com outros países desenvolvidos, a população chinesa ainda é relativamente jovem. Mas a proporção de crianças tem vindo a diminuir. A população em idade potencial para constituir a força de trabalho (16 aos 59 anos) atingiu o pico (74,5%) em 2010. Atualmente representa ainda 916 milhões, numa população de cerca de 1,4 mil milhões. Mas já se fala na necessidade de um baby boom para dar vi-talidade à economia. Talvez não aconteça no futuro próximo. Mas será por opção.

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