Cartola de Hitler leiloada por 50 mil euros na Alemanha: "interesse histórico" ou "imoralidade"?

As estrelas do leilão eram a cartola de Hitler, um vestido de Eva Braun e uma cópia do <em>Mein Kampf </em>pertencente a Göring. Mas havia talheres, guardanapos, armas, uniformes -- tudo de altos dignitários do nazismo, anunciados como "Artigos históricos de coleção alemães de 1919 para a frente". Uma venda imoral, chama-lhe a Associação Judaica Europeia, que refere o facto de o antissemitismo estar a subir na Europa.
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"Isto não é um apelo legal, mas moral. O que estão a fazer não é ilegal, mas imoral."

As palavras são do rabi Menachem Margolin, que preside à Associação Judaica Europeia, numa carta aberta aos responsáveis políticos, tornada pública poucos dias depois de mais uma comemoração da Noite de Cristal -- ocorrida a 9/10 de novembro de 1938 e assim denominada por causa dos vidros partidos dos comércios judaicos nessa noite de pogrom na qual foram incendiados e destruídos templos e livros sagrados e atacadas todas as pessoas identificadas como judias, tendo sido assassinadas 91 pessoas. Em causa estava o anúncio do leilão, esta quarta-feira, pela leiloeira Hermann Historica, de uma série de objetos de uso comum atribuídos a Hitler e aos principais dignitários do nazismo, incluindo uma cartola de Hitler e um vestido da sua companheira Eva Braun.

"Hoje em dia, na Europa e também na Alemanha (que tem agora o número mais elevado de casos registados no continente), o antisemitismo está a crescer e acreditamos que a venda deste tipo de memorabilia tem muito pouco valor histórico, sendo comprado por aqueles que glorificam e procuram justificar as ações do maior mal que afetou a Europa. O comércio deste tipo de peças não deveria ter lugar", escreveu o representante judaico, que lembrou o caso de uma carta escrita por uma criança assassinada no Holocausto e que tendo sido colocada à venda foi retirada devido aos protestos. "A mensagem da sociedade é clara e inequívoca: algumas coisas não devem simplesmente ser comercializadas."

Margolin frisou que as manifestações de antissemitismo têm aumentado na Europa, e sobretudo na Alemanha, onde em maio o comissário governamental para os assuntos judaicos aconselhou os judeus a não usarem o kippa -- ou solidéu -- em público. De acordo com dados oficiais, houve 1646 crimes de ódio contra judeus em 2018 --- um aumento de 10% em relação a 2017. Ataques com agressões físicas contra judeus na Alemanha também aumentaram no mesmo período, com 62 incidentes violentos contabilizados, contra 37 em 2017. Já este ano, ocorreu o primeiro ataque terrorista antissemita em território alemão desde o final da Segunda Guerra. Foi em Halle, a 9 de outubro, num dos dias mais sagrados da religião judaica, o Yom Kippur. Um homem de 27 anos, fortemente armado, dirigiu-se a uma sinagoga e tentou entrar, usando explosivos. Como não conseguiu, acabou por disparar contra outras pessoas na rua. O ataque foi filmado e publicado em direto na net. Antes, o terrorista tinha publicado um manifesto antissemita, antifeminsita e anti-estrangeiros.

O apelo do representante dos judeus europeus não surtiu, no entanto, efeito: o leilão foi mesmo para a frente e o chapéu de Hitler arrematado por 50 mil euros, enquanto uma primeira edição de luxo do seu livro Mein Kampf (A minha luta) alcançou 130 mil euros. Guardanapos, talheres e um açucareiro do líder nazi, assim como um contrato de arrendamento em seu nome, de quando vivia em Munique, estiveram também à venda, assim como pertences de outros altos dignitários - e criminosos - nazis como Hermann Göring e Joseph Göbbels.

Grande parte destes objetos foram apreendidos pelas tropas aliadas aquando da ocupação da Alemanha. Mas os vestidos de Eva Braun, por exemplo, foram encontrados em 40 malas apreendidas pelos militares americanos em Salzburgo, Áustria.

"Hitler vende"

Em resposta a Margolin, o diretor da Hermann Historica, Bernhard Pacher, assegurou que quem compra este tipo de objetos não são "nazis nem adoradores da ideologia nazi" e que a leiloeira "faz um grande esforço para assegurar que certo tipo de pessoas não tem acesso ao nosso catálogo e aos nossos leilões."

Porém, como verificou o El País, bastava um simples registo, através da internet, para ter acesso ao catálogo. Parcher garante ainda assim que a maioria dos compradores são museus, instituições estatais e colecionadores conhecidos. E se admitiu ao diário alemão Bild que "Hitler vende", diz que faz parte do trabalho da empresa impedir que "as pessoas erradas fiquem com estas coisas", e que "a maioria dos nossos clientes são movidos por um interesse histórico sério." Ao mesmo tempo acabaria por reconhecer que "é praticamente impossível de evitar que uma ou outra pessoa com a ideologia errada entre na licitação" e que após a compra não pode controlar o que vai ser feito com as peças.

Em 2016, a Hermann Historica já tinha sido notícia por vender um lote de memorablia nazi, por cerca de 600 mil euros, a alguém localizado na Argentina que supostamente a destinaria a um museu. O lote incluía um casaco de Hitler licitado por 275 mil euros e roupa interior de seda de Göring que custou três mil euros. Também nessa altura a leiloeira atribuiu "importância histórica" a esses objetos.

Margolin, contrapõe: "Que motivação pode haver que alguém compre talheres de Hitler? Onde está o interesse histórico intrínseco?" E conclui: "Vender este tipo de objetos não é diferente de leiloar objetos pessoais de Osama bin Laden. O argumento histórico é pura semântica. Os assassinos são assassinos."

Sensíveis a este tipo de argumentos, as autoridades austríacas, que em 2017 expropriaram a casa onde Hitler nasceu, em Braunau am Inn, encetando uma longa batalha judicial com a proprietária (que terminou no início deste ano, quando o Estado foi obrigado a pagar um milhão e meio de euros, cinco vezes o valor pelo qual o imóvel tinha sido comprado) vão transformá-la numa esquadra da polícia. A ideia é evitar a sua utilização como local de romaria nazi, algo que ocorria sobretudo a cada aniversário do nascimento do criminoso. Foi lançado um concurso de arquitetura europeu para redesenho do edifício situado na rua Salzburger Vorstad 15. Em frente ao edifício, numa placa em pedra gravada, lê-se: "Pela paz, liberdade e democracia. Fascismo nunca mais."

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