Carminho: "Comecei a cantar quando comecei a falar"

A fadista lançou o seu quinto disco, <em>Maria</em>. Ao DN falou da viagem do seu mais íntimo disco, dos tempos em que era a mascote da casa de fados da mãe e de como é preciso aceitar a vocação que se tem para a viver sem culpa.
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Chama-se Maria, como ela. Lançado ontem, é o quinto e mais pessoal álbum de Carminho, a quem os mais íntimos tratam por Maria ou por Carmo. Ficou Carminho nos fados, onde foi a mascote do Embuçado, casa de fados da sua mãe e também fadista Teresa Siqueira.

Foi lá que começou a cantar, e lá também comeu "grandes tigelas de morangos com chantili às escondidas da mãe" e ouviu "grandes conversas de faca e alguidar". Mas era nos fadistas que recaíam os seus olhos, personagens de um imaginário por onde passam Beatriz da Conceição ou Celeste Rodrigues.

Agora que corre o mundo a cantar e encontra na rotina das pequenas coisas uma forma de descansar uma cabeça que nunca para, e onde sempre chegam palavras, melodias, Carminho tornou a olhar para o fado subtraindo e subtraindo, até chegar ao que para ela é primordial. Canta-o neste Maria, produzido por si e em que é autora da maioria dos temas.

Há guitarra elétrica e o pedal steel de Filipe Cunha Monteiro. Há Estrela, quase uma canção de ação de graças, ou Pop Fado, uma brincadeira para os puristas do fado. Maria é um disco de fado, que abre com a sua voz a capella em A Tecedeira. Carminho conta-nos uma história. Não necessária e literalmente a sua, como nos previne em Poeta, mostrando que há uma grande diferença entre abrir a porta para a sua vida ou fazê-lo cantando.

Em Joana Espadinha, que assina O Menino e a Cidade e As Rosas, canção onde termina a brava odisseia de Maria, a fadista descobriu a sensação de ter alguém que escreve para si, para a sua voz, com todos os mundos que esta encerra.

O que é que uma miúda aprende no ambiente do fado, com histórias tão distantes da sua vida, e à noite?

Este disco nasce daí, desse pensamento sobre o que é que eu aprendi com os fados, com estar numa casa de fados, o que é que para mim é realmente primordial no fado. Aquilo era uma espécie de microclima para mim. Na escola, por exemplo, não podia dizer que cantava fado. Era completamente fora de moda e do que era cool. Na adolescência, se uma pessoa não é cool está perdida. Isso foi um dilema na minha vida. Este ambiente do fado, da noite, dos adultos, era um ambiente onde eu me sentia confiante, onde eu até era elogiada, porque as pessoas até achavam que eu tinha graça a cantar. Na altura tinha 12 anos. Acabei por ser um bocadinho uma mascote nos fados e isso acabou por me dar outros mundos. Tenho a certeza de que há muitos imaginários que estão em mim que fazem parte dessa época e desses personagens, da Beatriz [da Conceição], da Celeste [Rodrigues], da minha mãe [Teresa Siqueira], do Paquito, aquelas histórias dos empregados... Muitas vezes eu ia para lá mais cedo com a minha mãe e queria era jantar com o pessoal que trabalhava, com os cozinheiros, com os empregados, que eram os meus amigos e que me davam grandes tigelas de morangos com chantili às escondidas da minha mãe. Geralmente ficava em casa. A minha mãe não gostava nada que eu ficasse no jantar do pessoal, porque era só grandes conversas de faca e alguidar. Eu não percebia metade. Ficava era fascinada a olhar para aquela gente toda, e para os fadistas.

Ter a Beatriz da Conceição como heroína devia ser a coisa menos cool...

Completamente. Até porque a minha heroína dava-me grandes sabatinas e críticas. Eu ia a chorar para a casa de banho. E agradeço infinitamente porque foi isso que me fez evoluir. A Beatriz às vezes era dura comigo e mais tarde revelou-se um grande amor que tinha por mim também, porque de outra maneira se calhar nem teria perdido o tempo dela a criticar-me. Era muito minha amiga. E nós fazíamos grandes programas: íamos às compras juntas, fazíamos assim uns programas de dia.

Logo n' ATecedeira canta: "O fio apanhei por sorte ou por ter muita certeza." Lembrei-me de que não quis gravar logo o primeiro disco, fui ver o mundo. Gostava que falasse da certeza.

A sorte e a certeza para mim querem dizer intuição, que é algo que deves seguir. Acho que há sorte, conjunturas, mas dentro de nós há uma intuição e acho que é isso que deve prevalecer.

Isso tem que ver com um dom?

Acho que sim. Até porque eu sou intuída, não sou eu que intuo. Alguma coisa cresce em mim e eu só tenho de a ouvir e dar voz a essa intuição, não me esconder, não ter medo. Às vezes a intuição manda-nos por caminhos difíceis e há a tentação de ficar no conforto, naquilo que esperam de nós, porque depois vamos ter de explicar. Para mim ser livre não é fazer o que se quer, é estar no comando da direção, e como tal implica uma grande responsabilidade, porque às vezes levamos gente connosco.

Fala de liberdade na Estrela. Porque é que escolheu tocá-la também?

Eu não escolhi. Foi aquela guitarra que me escolheu. Tenho uma pena enorme de não me conseguir acompanhar em nenhum instrumento. Mas neste processo do disco em que estão aqui músicos, instrumentos, é um processo muito familiar e muito bonito, de casa. Eu resolvi pegar numa guitarra elétrica ligada ao amplificador e comecei a tocar o pouco que sei tocar, as coisas que vou compondo. Na guitarra elétrica é preciso muito pouco para tirar som, eu estava habituada à clássica. Então disse: "Esta guitarra está-me a ensinar a tocar." O Artur David pôs a gravar sem eu saber. Depois pôs-me a ouvir e disse: "Carminho, porque é que não há de ser assim?" Foi uma realização enorme.

É uma canção de ação de graças? Não necessariamente no sentido religioso.

Mas também. Não é só para um. Houve e continua a haver pessoas na nossa vida que nos ajudam não só a saber o nosso caminho como também a dar-nos essa liberdade. Uma coisa é alguém que nos conduz, e isso tem algo de paternalista e de sobreproteção, que até pode ter boas intenções, mas não nos deixa ser também nós a trilhar o nosso caminho. Outra coisa é aquele amor que nos ajuda a perceber o caminho mas também através dos nossos olhos.

"Ama e faz o que quiseres"

Exatamente.

Escreve porque tem coisas que não há como não expressar ou porque não encontrou o poema que queria?

Não há um momento em que me sento para compor para o disco. É sempre no dia-a-dia e sempre sem intenção de vir a ser gravado. É só expressar-me. Se estou a ter aquela ideia não vou fechá-la, não vou impedi-la de sair. Às vezes tenho de parar o que estou a fazer para aproveitar, para não me esquecer, porque às vezes as ideias vêm e nunca mais voltam. A Andorinha [de Canto] tenho a gravação original do Dictaphone. Eu ia na rua pego no telefone e começo: "Andorinha..." Vi uma andorinha qualquer. Fico assim em pausa durante imenso tempo. "Logo vejo que afinal não há primavera em mim" [canta novamente]. Para o disco fui abrindo a gaveta das coisas que tinha.

Então nos seus dias está sempre tudo ligado?

Sempre. Chega a ser exaustivo, porque há alturas em que gostava de fechar a porta do trabalho e ir fazer qualquer coisa. O meu trabalho não tem uma porta. A porta é a minha cabeça. E é na minha cabeça que está tudo. É difícil arranjar uma forma de fechar a porta. Espero não ser mal interpretada, porque há tanta gente que tem uma rotina, e é difícil viver numa rotina, naquele ramerrame da vida, não é de todo com desprimor pelas pessoas que têm outra vida, outra forma de organização da vida, mas a forma como eu descanso a cabeça é indo ao supermercado. Estás a perceber o que quero dizer?

Não é por ser uma coisa exótica?

Não é. É porque não tenho nada em casa para comer, porque estou sempre fora. Ter aquela sensação de abrir o frigorífico e ter coisas em casa ou passear com a minha mãe em Campo de Ourique, ver a rotina, ir à farmácia, comprar pão, ir aos correios, é quase uma espécie de sensação de que faço também parte da vida das outras pessoas. Não estou isolada.

Na forma como vive fica então clara a ideia de vocação, de vida dedicada a...

Tenho a certeza. É uma vocação porque me supera, ultrapassa-me. Acho que há muita gente que tem vocações, umas mais explícitas do que outras. Depois a pessoa quando descobre pode encaminhá-la, integrá-la na sua vida. Esta coisa de estar integrada na vida da minha família, do meu país, mas ao mesmo tempo fazer o meu trabalho, chegar às pessoas, é todo um processo de integração e de me sentir em paz com o que sou, aceitar-me como sou. De alguma maneira, um artista deve aceitar, assim como um enfermeiro e como um professor, que nasce para aquilo.

Para parar de se sentir culpado com certas coisas?

Cada profissão tem as suas. Eu não tenho horários nem rotinas. De repente tenho um dia livre em que podia estar com os meus amigos mas eles estão a trabalhar e eu tenho uma culpa. A pessoa tem de aceitar. O lugar do meu descanso é diferente do das outras pessoas. Até porque geralmente as pessoas estão a descansar quando eu lhes estou a dar alguma coisa, estão no seu momento de paz, de aproveitar a vida, vão a um concerto, vão com alguém de quem gostam.

Quem tem à frente quando canta foi e é uma questão? E o que pode fazer à vida das pessoas?

Acho que nunca pensei nisso até as pessoas começarem a dizer que às vezes eu fazia qualquer coisa à vida delas. Nas primeiras vezes chocou-me. Não fazia ideia de que isto podia chegar a esses extremos. Isso responsabiliza-me, mas ao mesmo tempo eu também sei que não sou eu quem faz isso à vida das pessoas, são as próprias pessoas e a sua historia que, em contacto com o facto de eu estar ali, e a dar o meu melhor, sentem coisas.

É uma feliz coincidência?

Sim. Há um encontro feliz, mas nunca se sabe quando é que vai haver. Às vezes eu estou muito emocionada, sinto que foi uma noite extraordinária e não mudei a vida de ninguém. Não me compete a mim saber quando é que mudei a vida de alguém. Mas compete-me fazer sempre o meu melhor, porque eventualmente posso estar a mudar alguma coisa na outra pessoa. Mas isso sou eu, és tu e é toda a gente. Não é uma coisa do artista só. Nós nunca sabemos quando é que podemos estar a criar alguma coisa especial na vida da outra pessoa. A sorrir, a ajudar, a ser simpático, ou a ser maldisposto. Nas Finanças, então, sentimos isso como nunca: aquela pessoa que nos ajuda um bocadinho mais do que é suposto e que muda a nossa vida. A eles não lhes custava nada e a nós deu-nos um jeito do caraças. Isso passa por uma disposição interna de cada um de nós. Não sabemos nunca se vamos mudar a vida do outro. Podemos é não correr o risco de perder essa oportunidade. Claro que é muito fácil falar...

Houve gente que a cantar mudou a sua vida?

Sem dúvida nenhuma. Abriu-me universos, possibilidades, senti coisas que não sabia se se podiam sentir. De repente eu identifico-o com aquela pessoa mas quem está a mudar sou eu. Ela foi uma agente de mudança. É como o agente imobiliário: a casa não é dele e o dinheiro não é dele, mas ele está ali a fazer tudo acontecer. [ri-se]

Deve ser engraçado quando isso acontece com a nossa mãe.

A minha mãe é das pessoas que mais me ensina e continua a fazê-lo. É bom haver uma crítica de alguém que gosta muito de nós, e que sabe. Se for a crítica da minha avó não serve, é tudo perfeito. A minha avó acha que eu sou um génio. Essa crítica não serve, porque assim não dá para cresceres.

O Pop Fado é uma brincadeira consigo ou também uma resposta para fora?

É uma brincadeira comigo. E este fado é de 1966, cantado pelo António Calvário, portanto já desde essa altura havia essa questão. Ri-me perdidamente quando ouvi isto pela primeira vez. Faço muita pesquisa e quando encontrei este fado achei inacreditável e fiquei radiante. Já estava escrito e vai continuar a ser escrito, continua a ser atual. É um dilema que nunca vai ter resolução. Já na altura da Amália diziam: "A Amália com as suas operetas..." Por causa do Alain Oulman. Mesmo o Alfredo Marceneiro também era criticado pelos fados que fazia. Hoje em dia são os fados tradicionais. O fado é uma língua viva. Uma coisa é força-lo à mudança, outra é deixá-lo viver com aquilo que as pessoas que fazem o fado hoje são, sentem e pensam, e usá-lo como linguagem urbana, atual, contemporânea, que é para isso que o fado serve, senão seria um género morto, que se recriava, e faria parte de uma representação. Eu não represento. Eu estou a vivê-lo, hoje. Neste disco estava com vontade de subtrair, de procurar a essência: o que é que para mim continua a ser fado mesmo que eu vá subtraindo, subtraindo? Para mim prevalece primeiro que tudo a energia, a dinâmica.

Ainda lhe apetece cantar numa casa de fados?

Eu canto algumas vezes. O meu irmão Rodrigo canta na Mesa de Frades e tenho sempre esse pretexto para ir lá. Gosto muito de cantar nas casas de fados.

Canta: "Tenho a loucura, sei o caminho, / Mas como posso partir sozinho/Sem um cavalo de várias cores?" [poema de Reinaldo Ferreira] O fado é o seu cavalo de várias cores?

É. É como uma linguagem maternal. Comecei a cantar mais ou menos ao mesmo tempo que comecei a falar. Se pensares bem não te lembras quando é que aprendeste a falar nem como, mas falas em português. E quando queres expressar aquilo que mais amas é em português. Até sabes falar francês, inglês e espanhol, mas se tiveres um namorado francês, espanhol ou inglês, de certeza que vai haver momentos em que lhe querias dizer qualquer coisa ainda mais profunda mas que a língua não te permite. Para mim o fado é em português, é a minha língua maternal, é onde digo mais abertamente aquilo que realmente sinto. O fado ensinou-me a ler a poesia, a ouvir a música. Agora quando passo para outros géneros musicais venho com uma escola que o fado me deu.

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